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Sentença de morte 112n5i

Juiz de Petrópolis defende a construção de casas às margens do rio Piabanha, exime de culpa a prefeitura e denuncia a "radicalização da defesa ambiental".

Manoel Francisco Brito · Lorenzo Aldé ·
6 de outubro de 2004 · 21 anos atrás

O que dizer de uma sentença judicial que, em nome do sofrimento “de pessoas humildes, que com muito esforço construíram as casas onde moram”, deixa cerca de 400 famílias vivendo em área de risco, nas margens do rio Piabanha em Petrópolis? Nada, responde a promotora Denise Tarin, do Ministério Público Estadual, que perdeu a parada para o juiz Ronald Pietre, da 4ª Vara Cível. “Sentença não se discute, se recorre”, diz ela. Sinal de que não está disposta a dar o caso por encerrado.

Não pode haver pontos-de-vista mais distantes sobre um mesmo assunto que o dela e o do juiz. Ele classifica a ação do Ministério Público como uma “grande falta de sensibilidade com centenas de famílias”. Em nome de “seu sofrimento e seus anseios”, considera impraticável “a demolição de casas de alvenaria, solidamente erguidas há muitos anos”. E acrescenta: “O que me fez decidir da maneira que eu decidi foi a quantidade de famílias que seriam removidas. Isso obrigaria a destruição de praticamente todas as construções no lado esquerdo do rio, ao longo da estrada União-Indústria”. E não deixa por menos: “A pretensão do Ministério Público, se fosse acolhida, traria um grande prejuízo ao meio ambiente. A demolição das várias construções (…) geraria uma grande quantidade de entulho, de difícil desfazimento sem afetar o meio ambiente”.

A promotora vê as coisas pelo outro lado, o das leis ambientais. Elas definem margens de rios e nascentes como áreas de preservação permanente que, portanto, precisam ser defendidas pelas autoridades contra qualquer tentativa de ocupação. Abriu um processo que pedia não só a remoção dos invasores e sua alocação em outra área, como a reconstituição das matas ciliares. Mas, no caso do Piabanha, a promotora mirou especificamente na segurança dos invasores, que se plantaram numa área de risco. Tarin pedia sua remoção para local seguro.

Na sentença, o juiz desqualificou por completo a ação civil pública, que seria “desprovida de razoabilidade, bom senso e embasamento jurídico correto”. E as ameaças que os moradores estariam correndo ali? Segundo ele, no processo “não havia qualquer informação sobre possibilidade de risco a essas pessoas”. Diz ele: “Conheço a área e nunca vi uma situação de risco patente. Pode até ser que algumas das casas estejam em situação de risco, mas é impossível que todas as 400 casas ofereçam riscos aos seus moradores”.

O Ministério Público alega que se baseia em estudos para comprovar a ameaça das enchentes no Piabanha, principal rio de Petrópolis. “Essa área na margem do rio é das piores que existem em Petrópolis em termos de risco”, argumenta Tarin. Ela cita um laudo da Superintendência Estadual de Rios e Lagos (Serla) e um estudo conjunto do Ministério Público e da UFRJ sobre as regiões de risco no município para dizer que há riscos tanto de deslizamentos quanto de inundações. O estudo começou a ser feito há cerca de quatro anos, quando o MP propôs a ação civil pública contra o município e o estado.

A promotora explica que não pretendia impor um favela-bairro ao município de Petrópolis. “Não queremos urbanizar nem legalizar ocupações irregulares”, diz. O juiz pensa o contrário: “O que me tranqüilizou foi conhecer o recadastramento de cada imóvel feito pela Prefeitura. Todos têm rede de esgoto, rede elétrica e alguns até telefone”.

Sua decisão exime o poder público de responsabilidade pela segurança das famílias. Afirma que a remoção e o reassentamento dos moradores acarretariam despesas excessivas à Prefeitura, que é soberana quando se trata de decidir onde alocar seus recursos orçamentários. “O Ministério Público está tentando interferir no processo de urbanização da cidade, o que é ilegal e ilegítimo. O Ministério Público não tem os votos para interferir nesse processo”, argumenta.

A legislação ambiental é criticada com ironia pelo magistrado. Pelo texto da sentença, se o direito coletivo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado fosse tomado ao pé da letra, “nos depararíamos com situações tão calamitosas, que ariam a ser cômicas e hilariantes.(…) Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo estão no topo da Serra dos Órgãos”. Ele até pergunta: “O que se faz? Acabam-se com três cidades e desalojam-se centenas de milhares?”

Pietre afirma que o Código Florestal só se aplica a áreas rurais. Mesmo reconhecendo a situação de degradação ambiental em Petrópolis, diz que há no município uma “radicalização em favor do meio ambiente”. Textualmente: “Os abusos na defesa ambiental têm sido constantes. (…) Uma inversão de valores começa a ocorrer. O meio ambiente é importante, mas o homem vem em primeiro lugar. (…) A árvore renasce. Basta plantar uma outra espécie. O homem não”. Recorre à história da cidade de Petrópolis, onde “as principais ruas margeiam os rios”. E da Humanidade: “… as civilizações surgiram ao longo dos rios. Um bom exemplo é o Rio Nilo. Após as suas cheias, a população utilizava-se do solo úmido para a agricultura. A preservação ambiental foi feita naturalmente”.

Antes de Ronald Pietre assumir a 4ª Vara Cível de Petrópolis, o juiz titular, Claudio Luís Dell’ Orto, parecia informado sobre o tamanho do estrago que a ocupação desordenada produziu no Piabanha. Mas Dell’ Orto foi convocado para trabalhar na Corregedoria do Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro e Priete, juiz em Itaipava, acabou chamado para ajudar a andar com alguns processos na 4ª Vara. A ação do Ministério Público acabou nas mãos de Pietre e a sentença bateu de frente com os ambientalistas.

No dia 4 de outubro, o Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental (APA) de Petrópolis divulgou um manifesto de apoio ao Ministério Público. Integram o Conselho o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), as secretarias de Meio Ambiente de Duque de Caxias, Guapimirim, Magé e Petrópolis, além de ONGs ambientalistas. O manifesto diz que a decisão poderá ser explorada politicamente, resultando “na institucionalização das ocupações irregulares” no município. E lembra que em 2001 o Judiciário deu liminares favoráveis à ação, determinando o cadastramento dos moradores e proibindo novas construções.

Enquanto as ONGs berravam, a promotora parecia acostumada com esse tipo de coisa: “Não é muito diferente da situação que se encontra por todo o país”, diz ela ao telefone, com um suspiro audível do outro lado da linha. O que fez Petrópolis ficar pelo menos um pouco diferente foi uma decisão da própria promotora. Ela cansou-se de receber denúncias e pedidos de socorro da comunidade contra desmatamentos, incêndios em áreas de floresta e ocupação irregular. Como resposta, ouvia de bombeiros, defesa civil e autoridades locais que faltava equipamento ou que fulano, da repartição x, esquecera-se de conversar com sicrano, do departamento y. Decidiu então abrir um inquérito para apurar de quem era a responsabilidade pela ineficiência e falta de coordenação dos órgãos públicos para lutar contra a degradação ambiental do município. O resultado não demorou a chegar.

Na quarta-feira, dia 6 de outubro, a promotora esteve em reunião no quartel dos bombeiros de Petrópolis com o comandante da corporação no município, o comandante da região serrana, pessoal do Ibama e da Secretaria Municipal do Meio Ambiente para discutir meios de integrar melhor seu trabalho. A idéia é iniciar um programa de prevenção ambiental para Petrópolis, que ainda tem uma área considerável de florestas. A próxima reunião vai acontecer dia 13 de dezembro e a idéia é que dela saia um plano de prevenção definitivo.

  • Manoel Francisco Brito 162n1z

  • Lorenzo Aldé s2u55

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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