Análises

A eminente vitória de pirro do agronegócio 1f6k2m

Discussão sobre alteração do Código Florestal precisa ser feita com menos critérios políticos e maior base científica. A biodiversidade está em jogo.

Ricardo Machado · Ludmilla Aguiar ·
22 de junho de 2010 · 15 anos atrás

Encontra-se em debate, de modo praticamente unilateral, a proposta de alteração do Código Florestal Brasileiro, uma legislação antiga (do começo do século ado) que foi criada com o objetivo básico de manter mananciais e cursos d’água e assegurar que os proprietários rurais mantivessem reservas de florestas em suas propriedades. Resumidamente, o Código exige que cada propriedade rural mantenha a vegetação nativa protetora de nascentes e cursos d’água, e um certo percentual da área sob a forma de reserva legal. As áreas no entorno de nascentes e cursos d’água, com ou sem vegetação, são denominadas de áreas de preservação permanente ou APP, e elas podem ocupar entre 5 e 10% de uma paisagem com terrenos de topografia suave. Para regiões montanhosas ou sujeitas a grandes inundações naturais, o percentual da APP pode ser mais expressivo.

A proposta que se encontra em discussão no Congresso Nacional, liderada por parlamentares que não possuem absolutamente nenhum conhecimento técnico sobre as funções ambientais e o alcance conservacionista do Código Florestal, prevê a redução do percentual da reserva legal, das áreas de preservação permanente e basicamente consolidar a política do fato consumado. Isto significa que aqueles que desobedeceram à legislação ambiental estariam anistiados de qualquer sanção ou punição. As justificativas para a alteração da legislação ambiental são as mesmas que levaram ao extermínio dos índios pelos bandeirantes em Goiás, ou que provocaram a redução do antigo Parque Nacional do Tocantins, ou que impedem o avanço no cumprimento das metas assumidas internacionalmente em prol de um desenvolvimento ambientalmente responsável: entraves ao desenvolvimento econômico.

“As justificativas para a alteração da legislação ambiental são as mesmas que levaram ao extermínio dos índios pelos bandeirantes em Goiás, ou que provocaram a redução do antigo Parque Nacional do Tocantins: entraves ao desenvolvimento econômico”.

Um obscuro e tendencioso estudo feito pela unidade de Monitoramento por Satélite da Embrapa tenta mostrar que a legislação ambiental, juntamente com o “excesso” de áreas protegidas existentes, faria com que a área disponível para a produção de alimentos no Brasil estivesse reduzida a “somente” 33% do território e que não teríamos como expandir a produção. O estudo revela-se enviesado de várias formas. Ao expressar os números do estudo em percentuais, mascara-se um fato notável: ainda que o estudo fosse acurado, o percentual citado representa uma área de quase trezentos milhões de hectares, área superior à área de países como a Alemanha, França, Espanha, Inglaterra, Itália, Portugal, Áustria, Bulgária, Finlândia e Grécia, combinados! O total é também superior à área que os Estados Unidos da America dedicam, por exemplo, para a agricultura. De acordo com a Divisão de Estatística da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO, o total de áreas de lavoura dos EUA é de 180 milhões de hectares. Na União Soviética, outra potência agrícola, a agricultura ocupa 123 milhões de hectares.

A asserção que não existem mais áreas para a expansão agrícola por causa das restrições ambientais, uma das argumentações básicas da bancada ruralista, mascara uma realidade e uma grande conquista da pesquisa agropecuária brasileira. Usando dados disponibilizados pela própria Embrapa, percebe-se que desde os anos 70, quando houve uma verdadeira revolução agrícola no pais, a área plantada aumentou de uns 40 milhões de hectares para quase 80 milhões de hectares. No mesmo período, contudo, a produção agrícola teve um aumento de mais de 210%, indicando que as boas safras estiveram mais relacionadas com o ganho em produtividade do que com o aumento da área plantada. Outro ponto importante, intencionalmente ignorado pelos defensores da alteração do Código Florestal, é que as atividades econômicas associadas com os ecossistemas naturais não são consideradas. Dados do Serviço Florestal Brasileiro indicam que somente o potencial de exploração manejada da madeira amazônica pode representar aproximadamente 4,5 bilhões de reais ao ano. Assim, há um falso debate de produção x conservação que é levantado por deputados e senadores que defendem a mudança na legislação ambiental, supostamente impeditiva do crescimento econômico. Nas condições atuais já somos um dos principais países produtores de soja, milho, carne de gado, frango, açúcar e café no mundo. Por que não podemos ser também os primeiros do mundo em cupuaçu, cagaita, óleo de copaíba, murici e pequi? Há muito o que investir em pesquisa sobre o potencial de exploração econômica de espécies nativas antes de dizimá-las.

Outro argumento insustentável levantado pelos pró-mudança é a dificuldade de cumprimento da legislação ambiental. Alega-se que seria impossível que as propriedades rurais se adequassem ao Código, a despeito do fato de que milhares de propriedades, especialmente aquelas localizadas nas fronteiras agrícolas, devem ter sido estabelecidas bem depois de 1934, quando o Código Florestal foi criado. Talvez fosse o caso de se perguntar: e se fosse uma mudança na área de tributos? E se novas alíquotas ou novas taxas fossem impostas à sociedade brasileira? Podemos argumentar que seria impossível fazer uma adequação, pois as empresas quebrariam, postos de trabalho fechariam e o país iria parar? Certamente que não, pois já estamos com 40% de carga tributária e o pais cresce como nunca.

Voltando às questões ambientais, caso o Código seja alterado da forma proposta, teremos nas mãos um grande ime para resolver: como manter a sustentabilidade ambiental sem o Código Florestal? Como dizer aos países compradores ou aos parceiros em acordos internacionais que conseguiremos manter nossa rica biodiversidade em meia dúzia de parques isolados, mal implantados, e que ocupam somente uma pequena porção do território brasileiro?

Se o Brasil deseja ser uma nação diferenciada e uma referência global, não podemos ar mensagens ambíguas e contraditórias para o mundo. Existem exemplos bem concretos e recentes que mostram como é grande a distância entre nosso discurso e o que acontece na prática. Desejamos ter assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas comercializamos como nunca bombas, minas e outros artefatos bélicos para países cujos conflitos foram condenados até mesmo pelo órgão global onde pleiteamos um reconhecimento. Alardeamos para o mundo que o nosso programa de produção de etanol é a solução para o aquecimento global, mas não pensamos duas vezes antes de explorar o petróleo da camada pré-sal. Somos orgulhosos do nosso agronegócio produtivo e arautos do combate à fome global, mas tente cruzar o mapa da fome mundial com o mapa de nosso comércio internacional para ver a incongruência do discurso. Na área ambiental caminhamos rapidamente para dar outro exemplo contraditório para o mundo. Assinamos acordos internacionais de proteção da biodiversidade e concordamos com as Metas do Milênio, mas vamos suprimir a necessidade de proteção da biodiversidade fora das unidades de conservação públicas.

“É preciso analisar o papel do Código Florestal na proteção ambiental e da diversidade biológica sob a óptica mais científica, sem apelos políticos e econômicos. Inúmeros trabalhos científicos demonstram que a manutenção de populações saudáveis e viáveis de animais e plantas nativos não será possível em áreas nativas pequenas e isoladas.”

Sabemos hoje que o conjunto de todas as unidades de conservação e terras indígenas representa apenas 26% do território brasileiro, mas esse número é somente uma média. Regiões como a Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, respectivamente,  possuem cerca de 3%, 2% e 1% de suas áreas originais mantidas por parques e reservas. Isso vale dizer que entre de 97 e 99% dessas regiões estão nas mãos de particulares e cabe a eles participarem na proteção de nosso patrimônio natural. Essa demanda não é baseada em leis secundárias, portarias ou resoluções, mas consta na nossa Constituição. De acordo com o Artigo 186 da Carta Magna, uma propriedade rural deve cumprir sua função social e essa condição só é alcançada quando o imóvel atende, simultaneamente, ao “aproveitamento racional e adequado”, à “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”, à “observância das disposições que regulam as relações de trabalho” e à “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Analisando o texto constitucional é fácil perceber que contribuir para a preservação do meio ambiente é uma das funções precípuas de um imóvel rural e a inobservância disto poderá levar o Estado a desapropriar a área, conforme determina o Artigo 184 da Constituição Brasileira.

Entretanto, é preciso analisar o papel do Código Florestal na proteção ambiental e da diversidade biológica sob a óptica mais científica, sem apelos políticos e econômicos. Inúmeros trabalhos científicos demonstram que a manutenção de populações saudáveis e viáveis de animais e plantas nativos não será possível em áreas nativas pequenas e isoladas. Embora o Código Florestal brasileiro não tenha sido criado originalmente para a proteção da biodiversidade, sabemos hoje, com base em princípios oriundos da biogeografia, ecologia de populações, ecologia de paisagens e biologia da conservação, que seu papel pode ser fundamental para a manutenção da dinâmica natural das espécies. Mudanças na legislação são possíveis e desejáveis, desde que o resultado final traga benefícios para a maioria da população. Talvez uma alteração plausível na legislação ambiental seja a realização de análises regionais para determinar as necessidades básicas de conservação da biota local e as demandas de desenvolvimento socioeconômico das comunidades locais. A definição prévia de espaços naturais representativos que estejam imersos em paisagens produtivas talvez seja a solução. Alguns países já pensam nesse tipo de solução que promove a ordenação do território. A Argentina, por exemplo, discute uma legislação ambiental que incorpora os princípios do Código Florestal brasileiro, mas planeja-se sua implantação em unidades territoriais como as micro-bacias e não em pequenas ou grandes propriedades rurais.

Para finalizar, salientamos que os produtores rurais são os principais e mais imediatos beneficiados com a manutenção de áreas nativas protetoras do solo, de mananciais e da fauna e flora locais. Estima-se que a produção de alimentos demande mais de 70% da água consumida pela sociedade humana. A fórmula é simples: sem Código, sem água. Sem água, sem alimento. Talvez a alteração proposta para o Código Florestal possa ser comparada à histórica vitória do Rei Pirro contra os Romanos: aparentemente acredita-se que haverá um ganho com a alteração do Código Florestal, mas na verdade será uma tremenda derrota para a sociedade brasileira.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

 

  • Ricardo Machado 3y2h3s

    Biólogo com mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela UFMG e doutorado em Ecologia pela UnB.

  • Ludmilla Aguiar 61524c

    Bióloga com mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela UFMG e doutorado em Ecologia pela UnB.

Leia também 1b437

Notícias
23 de maio de 2025

Transição energética entra de forma discreta na terceira carta da Presidência da COP30 161u3k

À comunidade internacional, André Corrêa do Lago delineia o que ele espera que seja alcançado nas negociações preparatórias de Bonn

Análises
23 de maio de 2025

Que semana, hein? 6s4y4a

Apesar das batalhas perdidas e dos ciclos que se fecham, a luta ambiental tem que seguir

Notícias
23 de maio de 2025

O Brasil e o mundo dão adeus a Sebastião Salgado, que viveu 81 anos de histórias e imagens 384169

O fotógrafo dedicou grande parte da vida aos temas humanistas e ecológicos, incluindo a restauração de ambientes naturais

Mais de ((o))eco 386al

código florestal 1ja6y

Notícias

Projeto que facilita desmatamento e libera obras hídricas em APPs é aprovado em comissão na Câmara 4c3vf

Análises

Código Florestal como peça fundamental para enfrentamento da crise climática 2u4d1v

Salada Verde

Por eventualidade, projeto que reduz para 50% Reserva Legal na Amazônia sai de pauta no Senado 6p2v35

Reportagens

ivo de Reserva Legal no país ultraa 16 milhões de hectares 6p4v1v

agronegócio 1l1f5b

Reportagens

Vidas Afogadas: Presos em canais de irrigação, animais silvestres agonizam até a morte 3m3n6j

Reportagens

Water canals threaten global wildlife 3bp3q

Reportagens

Canais de água ameaçam a vida selvagem mundial q4n67

Reportagens

Brazil needs to step up environmental control of its agricultural irrigation 617050

política ambiental 5n5325

Notícias

Transição energética entra de forma discreta na terceira carta da Presidência da COP30 161u3k

Análises

Que semana, hein? 6s4y4a

Análises

Pela transição energética Norte-Sul pactuada na COP30 3t5v4u

Notícias

Governo, ongs e sociedade civil se manifestam contra aprovação do PL do Licenciamento 51131e

biodiversidade 1l5w1a

Salada Verde

Brasil está entre os dez países líderes em projetos com créditos de biodiversidade 5a4z28

Salada Verde

Agenda do presidente definirá data de anúncio do plano de proteção à biodiversidade 4675f

Notícias

Um jequitibá de 65 metros: conheça a maior árvore viva da Mata Atlântica 2k671g

Notícias

Cientistas descobrem espécie de peixe que vive solitária na Amazônia 63v30

Deixe uma respostaCancelar resposta 2s56o

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.