Análises

Falcões tutti-frutti são melhores que nenhum falcão 2fj5i

Nas décadas de 1970-90, falcões-peregrinos foram salvos nos EUA usando métodos de mistura de linhagens que hoje seriam rejeitados no Brasil.

Fabio Olmos ·
9 de setembro de 2014 · 11 anos atrás

Um Falcão-peregrino esquimó a o verão no manguezal de Cubatão (SP). Foto: Fabio Olmos
Um Falcão-peregrino esquimó a o verão no manguezal de Cubatão (SP). Foto: Fabio Olmos

Embora sintetizado já em 1874, as propriedades inseticidas do DDT só foram descobertas em 1939 pelo químico suíço Paul Müller, que ganhou um Nobel (aquele prêmio que nenhum brasileiro ganhou) pela descoberta.

Com o início da Segunda Guerra, o novo inseticida se mostrou útil no controle de doenças como a malária e o tifo, o que alavancou seu uso na agricultura. Produtores rurais, programas de controle de endemias e cidadãos comuns despejaram milhões de litros da coisa no ambiente.

Ninguém havia se preocupado em testar os impactos do DDT no ambiente. Logo ficou claro que o inseticida não matava só insetos considerados pragas, estava também aniquilando as populações de outros animais, como as aves. Embora o DDT não mate rapidamente, ele causa alterações fisiológicas que tornam as cascas dos ovos finas e quebradiças.

Impacto do DDT

“A pressão de cientistas e do público fez com que o uso agrícola do DDT fosse banido nos Estados Unidos em 1972. No Brasil isso só aconteceu em 1985.”

O estrago causado pelo DDT e inseticidas similares inspirou a bióloga marinha Rachel Carson a escrever o livro Primavera Silenciosa, um marco no movimento ambientalista. Hoje sabemos que o DDT e outros pesticidas organoclorados não se degradam e acabam se acumulando conforme se sobe na cadeia trófica. E são uma hecatombe para a biota aquática.

Você, pináculo da pirâmide alimentar, tem quantidades significativas de DDT e derivados no seu corpo. Coisas que, entre outras coisas, são carcinogênicas e causam alterações hormonais. Apesar do que seu analista diz, talvez seja por isso que você é assim.

A pressão de cientistas e do público fez com que o uso agrícola do DDT fosse banido nos Estados Unidos em 1972. No Brasil isso só aconteceu em 1985.

Esta história nos lembra que o Brasil é um dos maiores consumidores de pesticidas do planeta, graças a um setor agrícola que é tosco embora se diga moderno. Aqui se usam substâncias proibidas em outras partes do mundo, reflexo de ministros da Agricultura que se comportam como representantes da indústria agroquímica e agências reguladoras que mostram tanta responsabilidade no assunto quanto os atuais Ministério da Fazenda e o subserviente Banco Central na condução da economia.

Pools gênicos e a recuperação do Peregrino

“Graças ao apoio do público, mais de 4.000 falcões nascidos em cativeiro foram libertados na sua antiga área de ocorrência e populações viáveis restabelecidas”

Aves de rapina foram seriamente impactados pelo DDT e várias populações foram extintas, como os falcões-peregrinos do leste dos Estados Unidos (o Falco peregrinus anatum). Um dos predadores alados mais icônicos, peregrinos ocorrem em boa parte do mundo, com mais ou menos 18 subespécies morfologicamente distintas. Membros de uma das formas migratórias (F. p. tundrius) vindos da Groelândia aparecem todos os anos na minha cidade natal, onde sua técnica de caça pode ser apreciada enquanto se toma um chopp e come-se pastel.

Indignados com a perda da espécie, cientistas e conservacionistas criaram o The Peregrine Fund em 1970. Graças ao apoio do público, mais de 4.000 falcões nascidos em cativeiro foram libertados na sua antiga área de ocorrência e populações viáveis restabelecidas. Como resultado, o falcão-peregrino foi excluído da lista norte-americana de espécies ameaçadas em 1999.

Além de mostrar que estratégias mão na massa que envolvem reprodução em cativeiro, solturas (sim, solturas podem funcionar), educação e ação política para eliminar as causas da extinção funcionam, o projeto do Peregrine Fund teve um detalhe que causa desconforto em parte da academia.

Os falcões estavam, para todos os efeitos, extintos a leste do rio Mississipi e havia um estoque limitado de aves que poderiam ser considerados anatum de verdade. Então foi decidida a soltura não só dos anatum, mas também de falcões com ancestrais vindos da tundra do Alasca e Canadá (Falco peregrinus tundrius), das Aleutas (F. p. pealei), Austrália (F. p. macropus), Argentina (F. p. cassini), Escócia (F. p. peregrinus) e Espanha (F. p. brookei).

Por quê? Sabemos que a composição genética de uma população biológica, e seu fenótipo, são resultado da seleção natural, seleção sexual e da deriva genética – além da sorte e azar – que aconteceram no ado.

Quando uma população é reduzida e há perda de diversidade genética, o que por si só pode trazer problemas, a seleção natural tem menos material com que trabalhar e isso pode resultar na incapacidade da espécie se adaptar e na sua consequente extinção. Especialmente em habitats em rápida transformação, como acontece sob influência humana.

Ou seja, misturar pools gênicos distintos produz falcões tutti-frutti com uma grande diversidade genética e fenotípica sobre a qual a seleção natural & cia podem fazer seu trabalho ao longo do tempo. Como os falcões estão muito bem obrigado, o mínimo que pode ser dito é que a estratégia funcionou em restaurar a espécie e seu nicho ecológico.

Este tipo de filosofia pode balizar projetos de reintrodução em áreas onde determinada espécie há muito está extinta, como araras na faixa costeira do sudeste e bicudos no interior, para dar dois exemplos. Se vou reintroduzir papagaios-de-peito-roxo em uma reserva no Paraná ou chauás no Rio de Janeiro, não seria conveniente trazer alguns com genes capixabas ou baianos para o plantel? Talvez sim.

Esta abordagem causa oposição em parte da academia porquê de um lado há a preocupação de manter populações de animais e plantas que sejam viáveis no longo prazo e cumpram seu papel ecológico como predadores, dispersores de sementes, engenheiros de ecossistemas, etc. Por outro lado, há os preocupados em manter a estrutura genética original das populações, não misturando linhagens com histórias evolutivas distintas.

Isto é válido, pois a história escrita nos genes pode ser perdida quando se misturam linhagens, impedindo a compreensão das relações entre as diferentes populações. E ter consequências negativas através da depressão exogâmica (o oposto da endogamia) e da hibridação que elimina linhagens distintas, levada ao extremo quando há hibridação (veja aqui e aqui).

Por outro lado, há certeza de que a diversidade genética de boa parte das espécies ameaçadas (e também de outras ainda não ameaçadas) está sendo erodida graças à ação humana enquanto construímos um planeta onde as pressões seletivas são muito diferentes das do ado, começando pelos habitats feitos pela humanidade e culminando no novo clima que resulta de nosso vício por combustíveis fósseis e por matar árvores. Esse é o futuro.

Um mix de indivíduos de diferentes linhagens já foi usado em outros programas de conservação além dos falcões-peregrinos, como o do icônico kakapo e o da uma vez quase extinta suçuarana da Flórida (um caso clássico de manejo genético). Mas talvez o mais revelador seja ver experimentos naturais.

Bugios-ruivos no Parque do Estado, São Paulo. Meio fluminenses, meio catarinenses. Foto: Fabio Olmos
Bugios-ruivos no Parque do Estado, São Paulo. Meio fluminenses, meio catarinenses. Foto: Fabio Olmos

Por exemplo, estudos com marcadores genéticos mostram que linhagens de bugios Alouatta guariba na Mata Atlântica ao sul do Rio Doce evoluíram em isolamento em dois “refúgios” no norte e sul da Mata Atlântica. Com a expansão das florestas durante os últimos milhares de anos os macacos antes isolados voltaram a ter contato e fazer bugiozinhos. Bugios da região ao redor da cidade de São Paulo hoje mostram marcadores genéticos tanto de populações fluminenses como catarinenses, sugerindo que ali é uma área de hibridação. Esta não é, de maneira alguma, uma situação rara. A natureza rotineiramente faz o que estressa alguns pesquisadores.

Devemos nos apegar ao ado ou pensar no futuro? Não há respostas fáceis para isso, ou mesmo aplicáveis a todas as situações.

É fácil se perder em discussões teóricas que terminam em longas listas do que não sabemos enquanto os bichos se lascam, tanto na natureza à espera de companheiros e genes novos como na gaiola, esperando que decidam se podem ser soltos aqui ou ali.

Quando os fundadores do Peregrine Fund decidiram salvar os falcões eles não sabiam um monte de coisas. Mas sabiam que queriam ver os falcões de volta à natureza e estavam dispostos a arriscar e aprender.

Quando vejo milhares de animais se acumulando em criadouros e centros de triagem enquanto especialistas puxam o freio de mão olhando mais para trás do que para a frente e criticando sem experimentar, é difícil não pensar que os falcões tiveram muita sorte de não serem brasileiros.

 

 

Leia também
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Os guarás-vermelhos de São Paulo: quando o errado dá certo
Mais vale um monte de aves soltas do que uma penca na gaiola

 

 

 

  • Fabio Olmos 4v5u30

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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