Análises

Crise climática global forçará mais migrações e deslocamentos humanos 4fy4a

Um aspecto fundamental ressaltado pelo relatório do IPCC é a necessidade de uma abordagem de governança das questões climáticas de longo prazo e orientada às gerações futuras. Isso porque, mesmo se as emissões parassem em meados do século e o aquecimento global cessasse, outras mudanças continuarão a acontecer

Zenaida Lauda-Rodriguez · Erika Pires Ramos ·
8 de setembro de 2021 · 4 anos atrás

No dia 09 de agosto, o Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicou o seu sexto relatório de avaliação, integrando as descobertas de mais de 14.000 estudos e os resultados dos recentes modelos climáticos globais. Este relatório resume o que sabemos sobre as mudanças climáticas com base na ciência física e suas projeções em diferentes ecossistemas no planeta. Apesar da sua ampla importância, alguns pontos chaves merecem destaque e preocupação.

O primeiro deles é que agora é “inequívoco” que as atividades humanas aqueceram o planeta e isto já levou e continua levando a mudanças generalizadas e rápidas nos oceanos, glaciais e na superfície da terra. As temperaturas registradas são as mais altas em cerca de 125.000 anos (1,09°C acima da linha de base pré-industrial) e as concentrações de CO2 também são as mais altas em pelo menos os últimos 2 milhões de anos. Nesse cenário, os cientistas afirmam que neste momento não existe lugar do planeta que não esteja experimentando as mudanças do clima.

O relatório também apresenta um conjunto de projeções de cinco cenários plausíveis para explorar possíveis trajetórias de emissões de gases de efeito estufa, que levam a possíveis futuros de 1,4°C a 4,4°C de aquecimento global médio até 2100. Em todos os cenários, as mudanças climáticas terão efeitos que impactarão sistemas críticos (como temperaturas, padrões de precipitação etc.) e de infraestrutura que afetarão diretamente às pessoas. No nível regional – para a região da América Central e América do Sul –, o relatório projeta, com uma alta confiabilidade, o aumento das temperaturas médias e seu contínuo incremento a taxas maiores do que a média global. Também prevê, com alta confiabilidade, mudanças na precipitação média, com aumentos no Noroeste e Sudeste da América do Sul e diminuição no Nordeste e Sudoeste da América do Sul (confiabilidade média).

Estas projeções podem ser melhor entendidas se pensarmos nos efeitos que causarão sobre as sociedades humanas. Devido a estas variações, a ocorrência de desastres (eventos de início súbito) como furacões, deslizamentos, enxurradas etc., assim como a intensificação de eventos de início lento ou gradativo, como a desertificação, o aumento do nível do mar, derretimento das calotas polares, degradação de solos etc., serão cada vez mais frequentes e extremos. Isto afetará não apenas populações e infraestruturas, mas também impactará no o a recursos (água e alimentos) e a setores produtivos estratégicos, como a agricultura e a energia. Segundo o relatório, mesmo que o aquecimento global médio seja limitado a 1,5°C (o melhor cenário esperado), alguns eventos extremos sem precedentes ainda ocorrerão cada vez mais, o que irá exacerbar e complicar outros perigos globais como conflitos, pandemias, etc.

Os desastres e eventos de início lento como detonantes de deslocamento e migração 3d371

Neste cenário, os especialistas alertam que, a menos que ações urgentes sejam tomadas, os incêndios e inundações recordes, entre outros impactos experimentados em todo o mundo nas últimas semanas, serão apenas uma amostra das próximas décadas.

Com efeito, nos últimos meses fomos testemunhas de eventos extremos em diferentes partes do mundo que constatam o alerta dos cientistas. Em 16 de julho, chuvas extremas e enchentes em vários países da Europa central, principalmente na Alemanha, deixaram como resultado 126 mortes, mais de mil pessoas desaparecidas, cidades inteiras destruídas pelas inundações e deslizamentos, e milhares de pessoas evacuadas por possível colapso de estruturas. Uma semana depois, na cidade de Henan, na China, mais de 395 mil pessoas tiveram que abandonar suas casas devido às chuvas torrenciais que afetaram a região central do país.

A ocorrência destes desastres deixa em evidência um fenômeno ainda pouco visibilizado e abordado; contudo, cada vez mais recorrente: a migração ambiental. Apesar da palavra “migração” ser geralmente relacionada ao movimento de pessoas entre países, esta também pode envolver o deslocamento interno (dentro das fronteiras de um país), podendo inclusive ser forçada, tal como acontece após um desastre.

Neste cenário, devido à perda e afetação de infraestruturas essenciais (moradias etc.), indivíduos e famílias ficam desabrigadas e são forçadas a se deslocar a abrigos temporários. Apesar desta resposta imediata e de assistência frente ao desastre, muitas famílias perdem suas casas de forma permanente e são obrigadas a buscar um novo lugar para viver. Em muitos casos, com a perda de seus bens e em situação de vulnerabilidade, as famílias e indivíduos mais precarizados terminam se estabelecendo em áreas expostas, vulneráveis à ocorrência de novos desastres, gerando um ciclo perverso de constante exposição, afetação e deslocamento. 

Devido a esta dinâmica, a projeção de aumento de eventos extremos e desastres constitui um importante alerta ao incremento de deslocamentos forçados que isto poderá implicar no futuro, e que já é uma realidade que se evidencia no presente. Segundo o último relatório do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, sigla em inglês), só no ano de 2020 foram reportados 40,5 milhões de novos deslocamentos internos no mundo todo, dos quais 30,7 milhões (aproximadamente 75%) foram impulsionados por desastres.

Entretanto, não só os eventos climáticos súbitos e os desastres daí decorrentes provocam movimentos populacionais. Os denominados eventos de início lento, como o aumento de temperaturas, secas, desertificação, aumento do nível do mar, entre outros, também geram fluxos migratórios. Embora seus efeitos não sejam tão evidentes quanto os desastres (de início súbito), os eventos gradativos podem afetar indivíduos e comunidades inteiras de forma lenta, inviabilizando suas formas de subsistência e permanência nos seus territórios, configurando assim a figura do migrante e do deslocado ambiental. Devido a esta dinâmica, as populações mais impactadas por este tipo de eventos são as comunidades rurais, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, caiçaras, entre outras, cujas formas de vida dependem do manejo do território e da agricultura familiar, da pesca tradicional, atividades de subsistência.

Desafios frente às projeções climáticas e a migração como adaptação 1f1x6i

Um aspecto fundamental ressaltado pelo relatório do IPCC é a necessidade de uma abordagem de governança das questões climáticas de longo prazo e orientada às gerações futuras. Isso porque, mesmo se as emissões parassem em meados do século e o aquecimento global cessasse, outras mudanças continuarão a acontecer. É o caso da elevação do nível do mar, o degelo das geleiras e do permafrost e a acidificação dos oceanos que continuarão e serão “irreversíveis” em escalas de tempo de séculos a milênios. Assim, mesmo que o aquecimento global seja limitado a 1,5°C neste século, o nível do mar aumentará 2 a 3 metros durante os próximos 2.000 anos no melhor cenário, e 19 a 22 metros em um cenário de emissões muito altas. Considerando estas projeções fica evidente a necessidade de se pensar nos impactos que serão causados principalmente em cidades e comunidades localizadas em zonas costeiras. Frente a esses casos, a migração se apresenta como uma estratégia de adaptação, na qual, frente à perda irreversível de territórios, indivíduos e populações terão de ser realocados a outros espaços mais seguros.

Outro desafio que pode ser extraído do relatório é a necessidade de se focar em ações preventivas e de planejamento que visem a médio prazo, a adaptação das populações aos processos de mudança que já estão acontecendo, em especial aqueles identificados como eventos de início lento. Nesse sentido, a migração, apesar de ser uma estratégia de adaptação, deve sempre ser olhada como último recurso para o enfrentamento às mudanças climáticas. Antes, devem ser esgotadas outras estratégias, sobretudo de soluções baseadas na natureza, que permitam às populações permanecerem e se adaptarem às mudanças nos seus territórios, evitando assim a perda de vínculos comunitários, territoriais e culturais.

Em relação aos desastres, a curto prazo, os governos e tomadores de decisão devem orientar suas ações não só na preparação das cidades para responder aos cenários projetados (com aumento de temperaturas extremas, secas prolongadas e intensificação de chuvas, deslizamentos e enchentes), mas também na atenção e erradicação das diversas vulnerabilidades sociais e econômicas que tornam às comunidades ainda mais vulneráveis aos impactos de um desastre.

A advertência está dada. Cabe aos governos tomarem medidas urgentes, radicais e transformadoras para eliminar os combustíveis fósseis, reduzir as emissões de acordo com sua responsabilidade e capacidade, e preparar suas populações para os cenários futuros, incluindo-as no desenho destas novas medidas e estratégias, e respeitando as diferentes formas de ser, viver e existir. Neste objetivo, será necessário exigir dos políticos e líderes corporativos assumirem sua responsabilidade e deixar de colocar seus interesses particulares acima das necessidades do coletivo e das gerações presentes e futuras. O compromisso não é apenas justo. É necessário e urgente. 

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Zenaida Lauda-Rodriguez 3f2b

    Membro da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (RESAMA), pesquisadora do Observatório Latinoamericano sobre Mobilidade Humana, Mudança Climática e Desastres (MOVE-LAM) e pós-doutora no Programa USP-Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

  • Erika Pires Ramos 3i1w1c

    Cofundadora da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (RESAMA) e pesquisadora do Observatório Latinoamericano sobre Mobilidade Humana, Mudança Climática e Desastres (MOVE-LAM)

Leia também 1b437

Reportagens
20 de agosto de 2021

Chuvas que devastaram cidades mineiras em 2020 já são efeito das mudanças climáticas, diz estudo 3k3o3t

Cientistas estimam que a industrialização e o aquecimento global aumentaram em 70% a probabilidade de ocorrer precipitação em volumes muito acima do esperado

Notícias
18 de agosto de 2021

Vida marinha em recifes tropicais pode cair pela metade até final do século com crise climática 4f6d1b

Estudo conduzido por pesquisadores brasileiros em Atol das Rocas mostra que se nível de emissões de CO2 for mantido como está, ecossistemas entrarão em colapso

Reportagens
9 de agosto de 2021

Mudanças climáticas já afetam todas as regiões do planeta, afirma IPCC 6f5a55

Extremos climáticos se tornaram mais intensos e frequentes na maioria das áreas terrestres e devem se agravar nas próximas décadas

Mais de ((o))eco 386al

mudanças climáticas 4jg2j

Salada Verde

Podcast investiga o que restou de Porto Alegre um ano após a enchente de 2024 6b493i

Colunas

Por que os cristãos defendem o licenciamento ambiental 3j1y6t

Reportagens

“Brasil não pode ser petroestado e líder climático ao mesmo tempo”, alerta Suely Araújo 6f1l7

Notícias

“O poder da juventude está em aproximar realidades cotidianas dos espaços de decisão” 5i55

ipcc 3p6o1e

Salada Verde

Nova presidente do México é a primeira cientista climática a governar um país 4n2m1r

Notícias

Bancos investiram quase 7 tri de dólares em fósseis desde Acordo de Paris 2vo1w

Salada Verde

Thelma Krug perde disputa para presidir IPCC 3f304h

Salada Verde

Brasileira Thelma Krug pode presidir órgão das Nações Unidas sobre crise climática 5fn25

biodiversidade 1l5w1a

Notícias

Estudo aponta multiplicação preocupante do peixe-leão no litoral brasileiro 2y2a21

Colunas

Cientistas negras viram a Maré: protagonismo e resistência na ecologia, evolução e ciências marinhas 6m1s35

Salada Verde

Brasil está entre os dez países líderes em projetos com créditos de biodiversidade 5a4z28

Salada Verde

Agenda do presidente definirá data de anúncio do plano de proteção à biodiversidade 4675f

icmbio u5v14

Notícias

Brasil tem 34 espécies de primatas ameaçadas de extinção d7343

Notícias

Conheça os oito parques nacionais mais visitados em 2024 4h2g22

Reportagens

Superlotação de animais e más condições geram nova crise no Cetas-RJ 245z1d

Salada Verde

Enquete mantém alta rejeição a rebaixamento da Serra do Itajaí de parque para floresta nacional 1a2x3r

Deixe uma respostaCancelar resposta 2s56o

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.