Análises

O paradoxo de Darwin e os menores vertebrados dos oceanos  6t535g

Cientistas tentam montar quebra-cabeça da evolução estudando peixes menores que uma chave 

Gualter Santana Pedrini ·
21 de agosto de 2019 · 6 anos atrás
Mariquita-pintada encara a câmera. Foto: Gualter Pedrini.

Uma lembrança da minha infância que ainda permanece vívida é a de chegar cedo na praia e andar uns poucos metros até uma formação rochosa que despontava sobre a areia. Durante a noite, as ondas varriam essas rochas, chegando a cobri-las completamente, mas, com o recuo da maré pela manhã, formavam-se poças em suas reentrâncias. Cada uma delas era como um pequeno aquário, com uma infinidade de criaturas que ficariam ali aprisionadas até a maré subir novamente. 

E assim eu ava quase todas as manhãs das minhas férias de verão, com uma rede de aquarismo vasculhando cada poça e coletando pequenos peixes e crustáceos. No meio da tarde, eu já tinha um balde repleto de criaturas coloridas, que me encaravam com aqueles olhos tão curiosos quanto eu as irava. Antes de ir embora para casa, devolvia cada um à sua poça de origem e esperava a maré subir para garantir que ninguém ficaria preso naquelas fendas por mais de um dia. 

Meu pai nunca me ensinou a pescar. Acredito que ele também não era muito bom nisso.  Porém, ele sempre me acompanhava nas horas que eu ava em lojas de pesca, “namorando” as máscaras de mergulho ovaladas iguais às do Jacques Costeau, experimentando inúmeras nadadeiras e no meu primeiro curso de mergulho, já que eu era novo demais para os papéis da minha credencial.  

Décadas se aram e ainda hoje, quando o mar está tão mexido que não dá para ver mais que uns palmos à frente, eu me contento em ficar observando e fotografando aqueles mesmos peixinhos da minha infância. Muitos mergulhadores demoram a aprender que a beleza do mar também está nos pequenos detalhes. Mesmo em ambientes inóspitos, cada fresta, cada metro quadrado de areia esconde uma gama de pequenos seres que constroem redes de interações e ali am todo o seu ciclo de vida.  

Cardume-de-xiras em naufrágio pernambucano. Um exemplo de peixes que se alimentam dos criptobentonicos. Foto: Gualter Pedrini.

Estamos acostumados a pensar no ecossistema recifal como um campeão de biodiversidade. Na verdade, porém, o fato é que suas águas não são assim tão ricas em nutrientes ao ponto de sustentar tamanha quantidade de espécies. Em 1842, o próprio Charles Darwin observou que a transparência das águas tropicais apontava para a rarefação de nutrientes e microrganismos, o que contrastava com o número de espécies coletadas por ele. Esta análise ficou conhecida como “o paradoxo de Darwin” e vem desafiando os cientistas por mais de 150 anos.

Na busca para por peças deste quebra-cabeça, cientistas da Austrália, Canadá, França e Estados Unidos, liderados pelo ecologista Simon Brandl (Simon Fraser University), analisaram dados coletados durante 20 anos acerca de populações de peixes dos corais de Belize, Polinésia sa e Austrália. Neste estudo, publicado pela revista Science no começo de 2019, eles desenvolveram simulações computadorizadas visando a diagnosticar o comportamento de reprodução, desova e crescimento dos menores vertebrados marinhos conhecidos. 

O mesmo fascínio da minha infância impulsionou estes pesquisadores. Brandl e seus colegas estudaram um grupo de 17 famílias de minúsculos peixes, incluindo gobies, blenios e cardinais. Denominados de criptobênticos (cripto = escondido; bêntos = vivem perto do fundo do mar), eles podem pesar apenas 0,1 grama quando adultos. Raramente são maiores que um dedo mindinho e quase sempre são camuflados ou muito ágeis em se esconder em qualquer fenda se ameaçados. Por conta dessas características, esses peixes am despercebidos na maioria dos censos de biodiversidade marinha, o que se reflete em um número reduzido de estudos abordando esses animais.

Macaquinho de cabeça preta se esconde em uma fresta do coral Foto: Gualter Pedrini.

Apesar de pouco abordados, a bibliografia aponta que esses peixes estão presentes em todos os recifes de corais tropicais, subtropicais ou temperados.  Na pesquisa de campo, a equipe de Brandl conseguiu contabilizar até 100 peixes criptobênticos por metro quadrado, com uma média de 15 indivíduos por metro quadrado, o que os tornam o grupo mais abundante de vertebrados dos recifes. 

Ao contrário dos animais maiores, as larvas desses peixes não seguem o fluxo das correntes até encontrar um lar propício: elas ficam próximas aos corais onde nasceram. Algumas espécies podem gerar até 7 gerações por ano, o que resulta em um fluxo constante de novos recrutas que são muito eficazes em se alimentar dos poucos crustáceos e algas microscópicas à sua volta e em usar essa energia para o próprio crescimento. Ao levarmos em consideração que a maioria destes animais será devorada antes de completar dois meses de vida, podemos entender a importância deles na cadeia alimentar dos recifes.

“Esses peixes são como doces”, diz Brandl em entrevista à Simon Fraser University. “Eles são minúsculos feixes coloridos de energia que são comidos quase imediatamente por qualquer organismo de recife de coral que pode morder, agarrar ou chupá-los. Nossos dados mostram que esses peixes obtêm muito mais sucesso reprodutivo para cada ovo que produzem, permitindo que suas populações criem um fluxo constante de juvenis que rapidamente substitui todos os peixes adultos que foram comidos”.

De fato, a pesquisa publicada na Science demonstra como os peixes criptobênticos podem responder por até 60% da biomassa de peixes consumidos nos recifes. Isto pode ser a chave para a melhor compreensão de como a cadeia alimentar nos recifes de coral se sustenta com tão poucos nutrientes. 

Maria-da-toca macho se esconde em meio a corais em Ilhabela, SP. Foto: Gualter Pedrini.

“Os peixinhos criptobênticos são muito importantes na cadeia trófica. Eles crescem e se reproduzem rapidamente, então, são alimento de outros peixes quando ovos, larvas, jovens e adultos”, comenta o Prof. Dr. Sergio Ricardo Floeter do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Mesmo com 70% desses peixes sendo consumidos em uma semana, a alta taxa de reprodução, de crescimento e de aproveitamento dos nutrientes dão a eles uma posição de destaque no equilíbrio do ecossistema. Por um outro lado, por estarem sempre tão próximos aos corais, o monitoramento destes animais pode servir de marcador diante de qualquer agressão mínima aos ambientes recifais. 

Gobi Neon aguarda sobre a rocha em Arraial do Cabo. Foto: Gualter Pedrini.
As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

Leia Também 

Nós e eles: Darwin e a conservação

Tubarões: vítimas do maior predador do planeta

Coral Vivo lança livro que descreve recifes do Brasil nos anos 60

 

 

  • Gualter Santana Pedrini 213p1o

    Professor Universitário, escritor, fotógrafo e mergulhador. Fundador do Projeto Antrópica, que divulga ONGs e pesquisas em prol dos oceanos.

Leia também 1b437

Notícias
19 de agosto de 2019

Coral Vivo lança livro que descreve recifes do Brasil nos anos 60 6o5z

Obra baseada na tese de doutorado do francês Jacques Laborel foi traduzida e teve os dados atualizados. Lançamento ocorreu na Embaixada da França, no Rio

Análises
7 de maio de 2019

Tubarões: vítimas do maior predador do planeta 382r4q

Estudo inédito aponta para o declínio das populações de tubarões no Oceano Atlântico

Colunas
23 de março de 2009

Nós e eles: Darwin e a conservação 2u1b9

O mundo natural que ele tanto amava vem sendo destruído em escala inédita, em grande parte devido ao sucesso da nossa recusa a engolir a revolucionária visão que ele nos mostrou.

Mais de ((o))eco 386al

ambiente marinho 1h2i42

Reportagens

A tragédia do plástico num santuário de aves marinhas 6w284b

Reportagens

Pesquisa mostra que existe mais plástico do que micro-organismos nas algas das praias do Recife 2c1s5w

Reportagens

O incrível mundo submerso no litoral do Paraná e sua rica biodiversidade preservada 131p

Reportagens

Um ano depois, origem do óleo que poluiu o Nordeste segue desconhecida 3a121t

recife de coral 2l20h

Notícias

Quarto branqueamento em massa dos recifes de corais já atinge o Brasil 54d2j

Notícias

Vida marinha em recifes tropicais pode cair pela metade até final do século com crise climática 4f6d1b

Notícias

Maior índice de branqueamento de corais em 35 anos é registrado na APA Costa dos Corais 4f4f4y

Salada Verde

Acompanhe o Encontro Recifal Brasileiro pelo YouTube  1q1r3n

conservação 4u55e

Reportagens

Maior área contínua de Mata Atlântica pode ser mantida com apoio do turismo 91ys

Salada Verde

Evento no RJ discute protagonismo da juventude no enfrentamento da crise climática 2g53r

Reportagens

Polícia do Amazonas aperta o cerco contra a exploração de animais silvestres 1pm63

Colunas

Leão XIV no cenário climático 341r2d

oceanos 415a65

Reportagens

O quão pouco já vimos das profundezas do mar 6f1i1a

Salada Verde

APA Baleia Franca sob ataque: sociedade protesta contra tentativa de redução 1b186g

Notícias

Projeto quer reduzir APA da Baleia-Franca, em Santa Catarina 69132m

Salada Verde

Trilha Transcarioca terá trecho oceânico até arquipélago das Cagarras 2k566y

Deixe uma respostaCancelar resposta 2s56o

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 9 33u2o

  1. Pereira diz:

    Nota-se atualmente alguns informes na mídia, sobre contaminação de corais, com o aumento da temperatura da água do mar. Infelizmente parece que estamos a caminho de transformações ambientais que nos serão custosas.


  2. Carlos diz:

    Muito massa! Ja li bastante sobre corais e em nenhum trabalho havia lido sobre esses pequenos e importantes organismos. Muito bom mesmo!


  3. Ana diz:

    Incrível ler sobre isso. São informações muito interessantes de se saber. Parabéns pelo texto.!


  4. Paulo diz:

  5. Pereira diz:

    Parabéns.
    As informações tem total sentido e lógica, para o contexto de que a "beleza do mar também está nos pequenos detalhes "
    Valem de informações como Preparo de Espírito , antes de novamente mergulhar. E assim, enxergar com outros olhos, apreciar com maior sentimento.


  6. Edmur diz:

    O termo adequado para o pesquisador que atua na área de ecologia é "ecólogo" e não "ecologista", proveniente da palavra inglesa "ecologist".


    1. Gualter diz:

  7. Lucia diz:

    Parabéns!!!!
    Linda matéria. 👏👏