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De volta para o futuro: ciclos de commodities e a concorrência da soja africana no mercado chinês 70s6

A crescente reticência do atual governo brasileiro em relação ao seu principal parceiro comercial possivelmente ratificou a motivação para a China diversificar seus fornecedores de matérias primas

6 de janeiro de 2021 · 4 anos atrás
  • GEMA 1h3d4g

    Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

  • Carlos Eduardo Young 4fkt

    Economista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • André Albuquerque Sant’Anna 4y6k3x

    André Albuquerque Sant’Anna é Pesquisador do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE/UFF ) e do Grupo de...

A commodity da vez. Foto: Pixabay.

Todo país tem seus mitos fundadores. No nosso caso, o mito da abundância de recursos naturais se confunde com a própria identidade nacional. Afinal, somos os “brasileiros” – aqueles que extraíram o pau-brasil até o limite de sua quase extinção na Mata Atlântica¹.

Somos também a terra do “se plantando, tudo dá”. Diante da crença em tanta benevolência divina, não é de se estranhar que na literatura nacional desponte como herói o preguiçoso Macunaíma. Como se a complementar a extensão de terras, não houvesse o sangue e suor dos escravos, indígenas nativos e africanos sequestrados.

Voltando a “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, o livro traz o lema “pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são”. Chama a atenção que Mario de Andrade, participante do movimento modernista, concordasse com a ideia de Brasil como celeiro. Afinal, bastaria nos livrar das saúvas para que nossa agricultura mostrasse toda sua pujança. Ora, esse diagnóstico não deve surpreender, uma vez que o escritor cresceu em São Paulo, no auge do café.

Àquela época, o Brasil – e, sobretudo, São Paulo – vivia um boom econômico com o café. No entanto, assim como já vivera com a borracha, o algodão e a cana, esse ciclo se esgotou. Como se não houvesse aprendizado, a cada ciclo, o país expandiu a produção agrícola utilizando mais terra, sem compromisso com inovações que aumentassem a produtividade. Deitados em berço esplêndido, agricultores aproveitavam o virtual monopólio na produção mundial para auferir renda.

No entanto, as leis da economia vigoram: se há lucro econômico excessivo, haverá entrada de concorrentes no mercado. Como ocorrido antes, com o declínio dos engenhos litorâneos pela concorrência das plantações de cana de açúcar no Caribe, e como sucedeu de forma concomitante à expansão do café, com os seringais do Sudeste Asiático interrompendo a “era de ouro” da borracha amazônica.

Isso tudo serve de algum aprendizado? Pelo visto, é como a lição difícil que o aluno prefere ignorar, torcendo para que não caia na prova. Mas a história sempre se repete, como tragédia, farsa ou mero enfado, e o problema sempre volta à tona.

Na última semana de outubro, uma notícia ou quase despercebida do noticiário econômico: a China fechou acordo para importar soja da Tanzânia. O Ministério da Economia se apressou para afirmar que a diversificação de compradores por parte da China não afetaria o Brasil. De fato, no curto prazo, as exportações de soja da Tanzânia não representam grande perigo para os produtores brasileiros. Mas, e no longo prazo? Uma análise adequada deve fugir da miopia de só olhar para apenas alguns poucos meses à frente.

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) produz informações sobre aptidão do solo para produção de soja. O Mapa 1 é baseado nas informações da FAO e considera a produtividade potencial na produção de soja pela aptidão do solo com alto nível de insumos (mecanização, aplicação de fertilizantes e agrotóxicos). As áreas mais claras representam as regiões com produtividade potencial mais alta para o cultivo da soja, incluindo as regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil. Os principais países competidores do Brasil nesse mercado global também estão nessa condição: Estados Unidos e Argentina. Como no Brasil, esses países conjugam alta produtividade potencial, investimentos e grande extensão de terras.

Mapa 1 – Produtividade potencial de soja com mecanização e utilização de fertilizantes e agrotóxicos. Fonte: FAO-GAEZ.

Porém, outras partes do planeta também possuem elevado potencial, mas ainda não desenvolveram o cultivo. O Mapa 2 mostra as áreas com maior produção efetiva de soja, e fica evidente que a África é a principal parte do mundo com largas extensões de terra com alto potencial de produção, mas com baixo aproveitamento produtivo. E isso não ou despercebido pela China.

Mapa 2 – Produção efetiva de soja, em 2018. Fonte: Our World in Data.

Deve-se recordar que a China criou, em 2013, a iniciativa conhecida como Belt and Road, pela qual realiza investimentos em infraestrutura em diversos países do mundo, sobretudo na Ásia e África. Nesse sentido, deve-se compreender a recente demanda chinesa pela soja tanzaniana como um o geopolítico com vistas a garantir o suprimento futuro de soja a partir da África, sem depender da produção sul-americana.

A crescente reticência do atual governo brasileiro em relação ao seu principal parceiro comercial possivelmente ratificou a motivação para a China diversificar seus fornecedores de matérias primas. Esse movimento não deve se restringir à soja, e tende a afetar outras commodities que hoje dinamizam a balança comercial brasileira.

Como em um filme de roteiro previsível, corremos o risco de rever o mesmo final dessa história: a concorrência de outros países derruba o preço das commodities, a atividade entra em estagnação, mas a vegetação nativa destruída nesse processo jamais se recupera. Alteram-se os protagonistas (borracha, café, soja), mas o final é sempre o mesmo: boom de crescimento associado à depleção de recursos naturais, com o mesmo triste fim de alta desigualdade.

Não custa lembrar, o agro é pop e o pop não poupa ninguém.

 

Nota

[1] Uma divertida discussão sobre as possíveis da origem do nome “Brasil”, incluindo a mítica ilha de Hy Brazil e a história da extração de pau-brasil, é apresentada por Eduardo Bueno em https://www.youtube.com/watch?v=XPnOYnxU7lw

Foto de destaque: Colheitadeira em plantação de soja. Crédito: Charles Echer/Pixabay.

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Comentários 3 5w2h3b

  1. Silvana diz:

    Vendo o que a soja faz com o Cerrado, tenho muita pena da Africa, cujas savanas tao lindas e ricas em fauna darão lugar a essa monocultura que depende do uso de Glifosato e outros venenos, alem do desmantamento total e alteracao do solo a ponto irreversiveis. Com o final do ciclo da soja, grande parte do Cerrado terá se perdido para sempre, como aconteceu na Mata Atlantica, que hoje tem um "mar de morros" coberto de capim colonião. Triste, muito triste.


  2. Marc Dourojeanni diz:

    A soja industrial chegou a África (Quênia e Tanzania) já faz algum tempo e, claro, se expande sobre terras que antes eram dedicadas ao pastoreio extensivo por grupos tribais, Masai entre outros. Essa forma de pecuária convivia com a fauna silvestre e não existia muita erosão. Os chineses, realmente, compraram as lideranças tribais e transformaram essas áreas em agricultura intensiva de soja com enorme prejudico social para os tribais (exceto os chefões) e para a flora e fauna naturais. Sendo região semiárida a erosão, especialmente eólica, é visível a grande distancia… A bonança não vai a durar muito..


  3. Neilo diz:

    O canal ruralbusines fez um documentário a respeito do tema. O título do documentário é: Agricultura mundial numa fria: África o engodo do século. Esse documentário mostra a África numa outra perspectiva. Vale a pena assistir.