Colunas

Racismo ambiental em tempos do COVID-19 2y145

A persistência da cultura escravocrata brasileira é um gravíssimo complicador na gestão da crise sanitária em nosso país

26 de março de 2020 · 5 anos atrás
  • Guilherme Purvin 4i4c4e

    Pós-doutorando junto ao Depto. de Geografia da FFLCH/USP, graduado em Direito e Letras pela USP. Doutor em Direito (USP). Membro da Academia Latino Americana de Direito Ambiental. Escritor.

Água encanada e sabão, serviço que nem todos têm em casa. Foto: Pixabay.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) dá o nome de saneamento ambiental ao controle de todos os fatores que possam acarretar efeitos nocivos ao bem estar físico, mental e social das pessoas. O sistema jurídico de saneamento ambiental (também chamado de “agenda ambiental marrom”) é formado pelas leis que cuidam da qualidade de vida nas cidades, em especial ao combate da poluição da água, do solo e do ar.

Em 2007, depois de uma longa discussão em âmbito legislativo, foi editada a Lei 11.445, estabelecendo as diretrizes para o saneamento básico no Brasil. Por saneamento básico, entende-se o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de público de água potável, esgotamento sanitário a partir das ligações prediais até o lançamento final no meio ambiente. limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos (coleta, tratamento e destino final do lixo doméstico e de varrição de vias públicas) e drenagem e manejo das águas pluviais. Três anos mais tarde, a Lei 12.305 nos trouxe a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

A ausência de saneamento básico nas favelas brasileiras, aliada à impossibilidade de estabelecer-se um distanciamento mínimo entre as pessoas, constitui neste momento uma bomba relógio que elevará o número de vítimas fatais a níveis alarmantes.

Segundo David Harvey, nas epidemias de cólera do século XIX, a transcendência das barreiras de classe foi suficientemente dramática para gerar o nascimento de um movimento público de saneamento e saúde que perdurou até os dias de hoje. No entanto, observa o autor, nem sempre foi claro se esse movimento foi projetado para proteger todos ou apenas as classes altas. Podemos dizer que, no Brasil, um país que preserva quase que inalterada a mentalidade escravocrata, definitivamente o saneamento ambiental é privilégio dos brancos e ricos.

O Direito Ambiental é um ramo do Direito. Suas bases são constitucionais. A primeira preocupação que devemos ter é com a própria efetividade do Direito – ou seja, com a defesa do Estado de Direito, isto é, a certeza de que as regras do jogo serão sempre respeitadas, sobretudo por aqueles que a estabeleceram (o poder público).

“Podemos dizer que, no Brasil, um país que preserva quase que inalterada a mentalidade escravocrata, definitivamente o saneamento ambiental é privilégio dos brancos e ricos.”

Os objetivos fundamentais de nossa República encontram-se no artigo 3º da Constituição Federal. Quero destacar aqui alguns aspectos desse artigo, tendo sempre em mente o completo descaso para com o saneamento no Brasil e o indisfarçável racismo ambiental, doença que persiste em nosso país, a despeito da abolição da escravatura em 1888. O inciso IV deste artigo dispõe que é objetivo da República a promoção do bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O artigo 4º da Constituição, por sua vez, impõe que o Brasil, em suas relações internacionais, reja-se pelos princípios da prevalência dos direitos humanos (inc. II) e pelo repúdio ao terrorismo e ao racismo (inc. VIII). O art. 5º, finalmente, estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

Atente-se que estou apenas transcrevendo algumas referências constitucionais expressas à repulsa ao racismo. Dispomos de um amplo sistema legal para minudenciar a implementação de citado objetivo fundamental da República. No entanto, quando superamos os estreitos limites da mera leitura das normas jurídicas, o que vemos à nossa frente é um completo descaso, sobretudo do poder público, para o efetivo combate ao racismo. Se, no plano cultural, sobretudo nos meios de comunicação, na tentativa de democratização do ensino superior e na produção artística, processou-se uma redução da desigualdade em razão de raça e cor, no campo do Direito Ambiental estamos anos-luz de atingir as metas constitucionais.

Talvez pior que isso, com a pandemia do corona-vírus, ao que parece estamos caminhando para trás, às vésperas de verdadeiro genocídio – um genocídio que tem cor: a imensa maioria das vítimas serão os afrodescendentes brasileiros, aos quais o Estado negou um direito constitucional regulamentado há 13 anos e que há 13 anos vem sendo empurrado para a frente. Afinal, como dizem os políticos profissionais, investir em saneamento básico não dá visibilidade: ninguém vê tubulações subterrâneas.

Na prática, quase nada mudou desde 1888 neste país. E o temor maior é que, no momento em que a tragédia tiver início, a presença do Estado nas favelas continue a ser, não postos de saúde, médicos, UTIs, mas a força policial, já anunciada há dias pelo Sr. Ministro da Justiça e da Segurança Pública, quando anunciou prisões e repressão a quem resistir a tratamentos médicos.

 

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.
Leia Também 

Como fica a relação com os animais em tempos de pandemia

Covid-19 e a ética pela sobrevivência

Vídeo: O que é racismo ambiental? por Letícia Giannella

 

Leia também 1b437

Vídeos
11 de novembro de 2018

Vídeo: O que é racismo ambiental? por Letícia Giannella 3d5k1y

As principais vítimas de danos e desastres ambientais são pobres, negras e moram em países periféricos. E isso não é mera “coincidência”

Análises
24 de março de 2020

Covid-19 e a ética pela sobrevivência v2l5a

Além de proteger a biodiversidade, é preciso discutir saúde pública, nos aspectos preventivos e em sua interação com os determinantes ambientais

Colunas
25 de março de 2020

Como fica a relação com os animais em tempos de pandemia 4u1nv

O direito trata os animais de acordo com sua utilidade, mas agora a situação pode sair do controle

Mais de ((o))eco 386al

direito ambiental 5s6j2a

Colunas

BHP Billiton: Há bons motivos para se esperar justiça socioambiental em Londres 4k6f3z

Colunas

Primeiro parque nacional surgiu na Ásia 6v1a1o

Colunas

Crise do princípio da precaução ambiental em tempos de emergência climática 2j206c

Notícias

Projeto de lei quer incluir direitos da natureza na legislação baiana 5g2h6o

Racismo Ambiental 2w3058

Reportagens

A crise climática tem cor e CEP, diz integrante do Greenpeace Brasil 386m22

Reportagens

Racismo ambiental, COP e juventudes: qual a relação? 2n2o2x

Reportagens

Crise global, soluções locais 504a6z

Reportagens

A urgência da adaptação climática 1m2t16

Covid-19 i4l4h

Reportagens

País não reforçou controle sanitário do comércio de animais na pandemia 3qj17

Reportagens

Documentário relembra negligência de Jair Bolsonaro na Amazônia na pandemia 571216

Notícias

O mergulho que faz bem para a cabeça 2yl66

Análises

Covid-19, um ano depois: o transbordamento continua 5z5z34

desmatamento 5h2z4x

Reportagens

Como comunidades de fecho de pasto conservam o Cerrado no oeste baiano 6x4y6b

Notícias

Perda global de florestas atinge recorde em 2024, mostra estudo da WRI 3l3w55

Análises

O PL da Devastação e a falsa promessa do progresso o1s2e

Notícias

Em audiência tensa no Senado, PL-bomba e Foz do Amazonas dominam a pauta 3k1x1u

Deixe uma respostaCancelar resposta 2s56o

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 7 4a6v2w

  1. Berenice diz:

    1. Ricardo Camargo diz:

      O texto não foi escrito para agradar, mas sim para expor fatos e posicionar-se sobre eles. Agora, resta saber se os fatos expostos não existem ou, existindo, a posição está equivocada. Mas, como hoje em dia está na moda argumentar por adjetivos…


      1. Berenice diz:

        Independente dos fatos, posso usar adjetivo. Ou sou obrigado a gostar da forma que o texto foi escrito por causa do seu autoritarismo velado?


        1. Ricardo Camargo diz:

          Não é obrigado a gostar do texto. Mas é de saber se nele se contém verdade ou mentira. Mas entendo, democraticamente, que sua pessoa tem o direito soberano de dar como verdadeiro somente aquilo que lhe agrada.


  2. Ricardo Camargo diz:

    Ao discutirmos as reflexões de Yuval Noah Harari sobre a possibilidade de controle do Estado sobre os dados do cidadão a partir da situação criada pela pandemia, foi recordado que, mais preocupante que o controle do Estado, que poderia ser tanto democrático quanto autoritário, seria o controle por parte do empresariado, já que este jamais atua em nome do altruísmo, mas sim em nome do beneficio individual, a sermos fiéis aos clássicos do liberalismo econômico (ou liberismo). Recordou-se, mais, que o mercado não é antipático à atuação do Estado, desde que este venha para reforçar a musculatura financeira dos agentes privados, a famosa função pública de "fomento" a que se refere o caput do artigo 174 da Constituição Federal brasileira. Ao Estado, exige-se a prestação de serviços públicos, em caráter obrigatório, nos termos do artigo 175 da mesma Constituição. Exige-se, ainda, que atue em caráter impessoal, nos termos do caput do artigo 37, ainda da Constituição. Entretanto, o que se vê, hoje, é uma teimosia em reduzir a humanidade a quem tem alguma significação em termos de "mercado", e a maior parte da população que não significa algo "relevante" em termos de "mercado" é precisamente aquela que foi tida como "naturalmente" destinada a ser escravizada ou a desaparecer para abrir espaço a quem julgava ter sido investido por Deus na condição de seu dono.


      1. Ricardo Camargo diz:

        Capacidade de demonstrar a consistência dos argumentos, realmente, notável, a de quem apenas faz uma perguntinha desqualificatória…