Análises

A conservação e os irmãos Karamazov 2283q

Em uma península rica em biodiversidade, o governo da Coréia do Sul anunciou que vai criar um Parque da Paz na Zona Desmilitarizada entre sua fronteira com a Coréia do Norte.

Pedro da Cunha e Menezes ·
15 de dezembro de 2009 · 15 anos atrás

O governo da Coréia do Sul anunciou que vai criar um Parque da Paz na Zona Desmilitarizada entre as Coréias do Norte e do Sul.A DMZ, sigla pela qual a região é conhecida, foi estabelecida por força da entrada em vigor do armstício de 27 de julho de 1953, que encerrou as hostilidades militares naquela península. Tem 246 quilômetros de comprimento por quatro de largura, totalizando 98.400 hectares. Exceto em pequenos corredores previamente acordados, é vedada a permanência, ou mesmo o trânsito de pessoas em seu interior sem expressa autorização de ambos os lados. Na prática, a Zona Desmilitarizada subtrai às Coréias uma fronteira comum, como a entendemos no século XXI. Com efeito, constitui uma área tampão cuja função é evitar o contato entre os vizinhos.

Em todo seu limite terrestre, a Zona Desmilitarizada encontra-se cercada por arame farpado, flanqueado por minas explosivas. Um milhão e meio de soldados estão estacionados a menos de 20 quilômetros de distância de ambos os lados da Zona Desmilitarizada o que a torna a área protegida mais bem guardada do mundo. Nesse sentido, embora juridicamente a Zona Desmilitarizada não seja uma unidade de conservação, na prática, ela é o sonho de todo conservacionista radical, pois acabou criando as condições para que a natureza se desenvolvesse por meio de processos exclusivamente naturais e sem interferências antrópicas durante mais de meio século.

Desde 1986, pesquisadores sul-coreanos têm observado que antigas fazendas deram lugar a ambientes de flora nativa regenerada. Analogamente, tem-se catalogado com frequência cada vez maior a aparição nos limites da Zona Desmilitarizada de animais ameaçados, ou considerados em risco de extinção, como o urso preto e o leopardo asiático. Tamanha diversidade biológica em uma península densamente povoada e com grandes problemas ambientais tem sido repetidamente saudada por ecologistas sul-coreanos que, a partir de fins da década de 1980, se organizaram para tentar transformar a Zona Desmilitarizada em uma unidade de conservação transfronteiriça, aberta a pesquisas, atividades de manejo como eventuais reintroduções de espécies e, em um segundo momento, turismo.

Embora a Coréia do Norte não tenha se manifestado a respeito, as autoridades de Seul anunciaram que os planos de implementação do Parque seriam detalhados até maio de 2010, etapa a ser sucedida pela elaboração de uma legislação especial a ser apreciada no Parlamento da Coréia do Sul no segundo semestre do ano que vem.

Na verdade, pouco importa se a iniciativa contou ou não com o apoio norte-coreano. Do ponto de vista da conservação, a Zona Desmilitarizada preenche as aspirações do mais exigente ambientalista: está fortemente guardada contra qualquer impacto ou degradação e tem seus processos naturais de evolução assegurados. Sob esse prima, a criação de qualquer arranjo político que implique em maior presença antrópica na região, exceto para atividades de pesquisa e eventuais reintroduções de espécies, balizadas em avaliações técnicas, tenderá a enfraquecer a integridade ecológica da área. Assim, é evidente que a proposta sul-coreana não visa proteger a biota da Zona Desmilitarizada- melhor salvaguardada que está não ficará. O anúncio da criação do Parque da Paz e os os deliberadamente lentos para a publicação de seu planejamento e regras de implementação parecem atender a objetivos de outra ordem, como o de transformar a Zona Desmilitarizada em uma fronteira de integração, que proporcione maior aproximação entre ambas as Coréias por meio do diálogo técnico em prol da preservação ambiental. Trata-se de movimento corajoso e de difícil consecussão, que merece ser acompanhado de perto, já que pode servir de exemplo auspicioso em que a conservação é o cimento da reconciliação entre dois povos irmãos e que poderia ser replicado em outras áreas onde há conflitos de fronteiras.

  • Pedro da Cunha e Menezes 1f5i6k

    Fundador da Trilha Transcarioca e Diretor da Rede Brasileira de Trilhas.

Leia também 1b437

Reportagens
4 de junho de 2025

O adeus de Niède Guidon, a matriarca da Serra da Capivara i5r34

Arqueóloga foi uma das principais forças para criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, e mudou a compreensão sobre a ocupação humana das Américas

Reportagens
4 de junho de 2025

Niède Guidon, a gigante da conservação e da pesquisa 5ce41

Em uma de suas últimas entrevistas, realizada em 2022, a arqueóloga franco-brasileira relembra sua trajetória para o Mulheres da Conservação

Colunas
4 de junho de 2025

Verão em Realengo  3zm6k

Na semana mundial do meio ambiente estaremos aqui caminhando e cantando, nos dias 06 e 07 de junho, uma sexta e um sábado, em dias muito úteis para essa jornada de transformação ecológica e energética

Mais de ((o))eco 386al

desmatamento 5h2z4x

Notícias

Iniciativa quer formar 1000 líderes pelo desmatamento zero no Brasil até 2030 4r6h20

Reportagens

Como comunidades de fecho de pasto conservam o Cerrado no oeste baiano 6x4y6b

Notícias

Perda global de florestas atinge recorde em 2024, mostra estudo da WRI 3l3w55

Análises

O PL da Devastação e a falsa promessa do progresso o1s2e

Ar Livre 503524

Notícias

O feitiço de Marrocos 6b6qw

Notícias

Morte em Yosemite 255f6x

Notícias

Calçado ideal q325u

Notícias

Cicloturismo 2u6z3

ICS 6p4522

Notícias

Perda global de florestas atinge recorde em 2024, mostra estudo da WRI 3l3w55

Notícias

Transição energética entra de forma discreta na terceira carta da Presidência da COP30 161u3k

Salada Verde

Veja como votou cada senador no projeto que implode o licenciamento ambiental 6oy3g

Reportagens

Brasil aposta na conciliação entre convenções da ONU para enfrentar crises globais 3p1w31

cidades 612752

Notícias

Jardim de Alah, no Rio, terá manifestação neste sábado contra corte de árvores 3g1g1g

Reportagens

Crise global, soluções locais 504a6z

Reportagens

A urgência da adaptação climática 1m2t16

Reportagens

(in)justiça ambiental, para além de um conceito  572n6r

Deixe uma respostaCancelar resposta 2s56o

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.