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Serra dos lobos 1m2h8

Projeto desenvolvido na Serra da Canastra (MG) levanta dados precisos sobre lobo-guará e avança para outros estados. Vulnerável, espécie tem perdido espaço para agronegócio.

Bernardo Camara · Adriano Gambarini ·
13 de junho de 2008 · 17 anos atrás

Quem chega ao Parque Nacional da Serra da Canastra, no interior de Minas Gerais, logo estica o pescoço à procura dos lobos-guarás. Afinal, é por ali que rodeiam as populações mais densas dos 25 mil Chrysocyon brachyurus que restam hoje na América do Sul. Empurrada para a categoria de vulnerável pelo agronegócio, a espécie virou objeto de estudo do projeto Lobo na Canastra, que em quatro anos conseguiu levantar dados inéditos para a conservação do mamífero.

Ainda que o Brasil seja reduto de aproximadamente 90% dos lobos-guarás que ainda existem, a coisa também anda feia por aqui. A abertura de estradas para o escoamento da produção agrícola está inchando os índices de atropelamento do animal. E as galinhas que ciscam despreocupadas porteira afora viram alvo fácil do mamífero, que após a primeira dentada tornam-se inimigos públicos dos fazendeiros.

Em 2004, um mutirão de aproximadamente 30 pesquisadores aterrissou na região não só para apaziguar as relações entre os brachyurus e a comunidade local. O objetivo daquela gente que vinha de todo lado – do Rio Grande do Sul a Brasília – era jogar no computador uma pesquisa complexa e multidisciplinar sobre aquele animal. Foi assim que surgiu a parceria entre o Centro Nacional de Pesquisas para a Conservação de Predadores Naturais – Cenap/ICMBio, o Instituto Pró-Carnívoros e universidades brasileiras.

“O projeto nasceu com a necessidade de medir o impacto humano naquela população”, conta o analista ambiental Rogério Cunha de Paula, do Cenap, e um dos coordenadores do Lobo na Canastra. “Todo início de projeto começa lento. O nosso já começou ‘pauleira’”, recorda. O que não chega a ser exagero. Nos 48 meses que se aram desde que o primeiro lobo parou nas mãos dos especialistas, foram 43 indivíduos capturados e monitorados até hoje.

O resultado disso foram longos e precisos relatórios em cima do comportamento, ecologia, genética e os mais diversos ângulos de análise sobre a espécie. Além de terem subsidiado seu plano de ação internacional, lançado no início de maio, os dados jogaram luz sobre os desafios que até então o canídeo tinha de enfrentar por conta própria. E eles não são poucos.

Matemática com lobos

De acordo com as conclusões do projeto, uma grande quantidade de lobos-guará se aventuram em estradas e morrem atropelados. Numa projeção para as populações com menos de três mil indivíduos, a probabilidade de extinção varia de 10 a 99%. Nos grupos com cerca de 100 animais, o sumiço é quase certo. “É o caso dos lobos da Estação Ecológica de Águas Emendadas, em Planaltina, Distrito Federal. A espécie vem sofrendo muito com atropelamentos e já caminha para uma extinção local”, alerta Cunha.

A destruição dos habitats, que tem corrido solta no Cerrado, também figura como um dos principais fatores de risco. Ainda que, em 100 anos, as simulações não apontem para o desaparecimento de populações com mais de 100 indivíduos, o recorte de 2% do ambiente natural já seria suficiente para dizimar 50% de algumas populações em apenas 30 anos. Mesmo sobrevivendo no curto prazo, os grupos mais densos enfrentariam no futuro uma redução significativa da diversidade genética.

A descaracterização do espaço natural vem forçando os brachyurus a driblar lavouras e pastos que se interpõem no caminho com frequência cada vez maior. Graças à amplitude de sua dieta, que vai de frutos a pequenos mamíferos, eles estão conseguindo se virar bem em novos ambientes, como regiões devastadas de Mata Atlântica. Mas o analista ambiental do Cenap lembra que jeitinho tem limite: “Eles precisam estar num mosaico em que as áreas alteradas destinadas a campos de agricultura ou pastagem esteja mesclada com áreas naturais de remanescentes”.

Além desses problemas, a equipe do Lobo na Canastra encontrou mais um indício desfavorável. A proximidade dos canídeos silvestres com os domésticos está levando aos guarás doenças tipicamente urbanas, como a cinomose. Mas nesse caso, os dados ainda são preliminares. “Isso é real. Só não sabemos ainda o quanto isso gera de mortalidade e quanto isso é prejudicial para a vida deles”, explica Cunha.

Essa mescla de realidades adversas alcançou o pior estágio na Argentina, onde ainda existem dez populações principais do lobo-guará. Do jeito que as coisas estão, somente uma delas tem chances de sobrevivência em 100 anos, com uma probabilidade tímida de 3%. Nas demais, a possibilidade de extinção é dada como certa: 100%. No Plano de Ação, um dos itens ressalta a necessidade de se retirar a espécie dos clubes de caça, praticada com o aval da lei pelos argentinos.

Precisão

Antes do projeto decolar, as informações sobre o animal de pêlos avermelhados eram bastante esparsas no Brasil. A escassez de recursos contribuiu largamente para esse quadro. O apoio de especialistas que saíram de instituições como a Universidade de Brasília (UnB) e a PUC do Rio Grande do Sul foi determinante para a coleta e análise de dados. De 2004 para cá, o time já atraiu mais de um milhão de reais, entre investimentos estrangeiros e prêmios por reconhecimento dos trabalhos.

Com as doações, a pindaíba deu lugar a um maior respaldo tecnológico, permitindo a realização de análises mais precisas. É o caso do monitoramento por hormônio, que comparou o nível de estresse dos animais que permanecem dentro do parque com os que dão suas voltinhas pelo entorno. Sem surpresas, o levantamento indicou que os lobos da periferia são mais estressados que os do núcleo da unidade. E aqueles que am distante dos limites da UC carregam os índices mais altos.

A última conquista tecnológica já está no pescoço de três lobos, há mais de um ano: são os colares com dispositivo GPS, que fornecem informações muito mais refinadas que os antigos rádio-colares. Dividindo a coordenação do projeto, o biólogo Flávio Rodrigues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que a aquisição possibilita um enorme salto nas pesquisas, e avisa que já há outros dois equipamentos a caminho. “A diferença na qualidade de dados é gritante. Com isso, você tem condições de aferir o padrão de movimentação, uso de habitat, a relação social entre os indivíduos, se eles utilizam ou evitam área degradada”, exemplifica.

Cinema na roça

Enquanto uma turma se embrenha no Cerrado à procura dos canídeos, outra equipe do Lobo na Canastra vai atrás das comunidades locais. A tarefa não é fácil, pois inúmeros moradores vêem no lobo um potencial devastador de galinheiros. “Para o produtor, o lobo era responsável por tudo. Mas tem gavião, jaguatirica, cachorro-do-mato, que também fazem esses ataques. Fizemos uma avaliação de quantos animais participam desse prejuízo e mostramos que ele não é o único responsável”, conta Rogério Cunha.

Nos primeiros contatos com as populações locais, a trupe já convenceu muita gente a não deixar suas aves soltas por aí. Uma série de galinheiros foi construído nas propriedades, com o argumento de que a produção aumenta e as surpresas desagradáveis diminuem. Tudo na base da conversa. “O que a gente tem feito é a tentativa de começar a mobilizar a comunidade para discutir as questões. O contato direto é importante, para mostrar que não estamos ali só para coletar sangue e acompanhar o bicho, mas também para dar uma resposta às pessoas”, explica Marcelo Bizerril, biólogo da UnB que coordena o braço de educação ambiental do projeto.

Mas para pegar a população da roça pelo pé, o projeto decidiu por uma estratégia mais atraente: arranjou cadeiras, caixas de som, telão e levou para as praças públicas o chamado Cine Lobo, um cinema itinerante que exibe diversos filmes, nacionais ou não. Antes das sessões, quando os espectadores se espremem para pegar o melhor lugar, a equipe do projeto inicia um debate e a alguns documentários sobre o canídeo.

“O cinema é uma maneira de reunir as pessoas. Assim, a gente pode ter discussões mais aprofundadas”, assegura Bizerril. “Nossos curtas falam da natureza da Canastra, do lobo, dos conflitos entre o animal e as galinhas”, vai listando, ao explicar que os filmes são editados na própria UnB. “Enquanto os pesquisadores trabalham em campo, nós vamos conhecendo a comunidade, dando palestras”.

Os próximos os do projeto já estão traçados. No início do ano, todos os envolvidos se reuniram para discutir os acertos e os furos. Além de colaborar para a implementação do Plano de Ação, a idéia principal é que o Lobo na Canastra ganhe novos ares. O que na prática significa estruturar, a princípio, ações por Paraná, São Paulo e Mato Grosso, além de continuar os trabalhos por Minas. “Desde o início, a intenção era usar a Canastra como modelo para replicar em outras localidades. Depois de quatro anos e meio de projeto, já temos esse modelo”, garante Rodrigues. “Queremos um monitoramento a longo prazo, que isso seja eterno”, conclui Cunha.

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    Bernardo Camara é jornalista formado pela PUC-Rio. Desde 2007 dedica-se a temas ambientais e de direitos humanos. Viveu por 4...

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