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A última flor do Crato 423w46

O mais antigo lírio que se conhece foi identificado a partir de um fóssil da Chapada do Araripe. Trata-se de um dos mais antigos exemplares de plantas monocotiledôneas que se tem conhecimento

Peter Moon ·
15 de julho de 2019 · 6 anos atrás
Crédito: Museum für Naturkunde Berlin.

A Chapada do Araripe, encravada entre o Ceará e Pernambuco, é conhecida mundialmente pelos seus magníficos fósseis de pterossauros, répteis voadores extintos que patrulhavam os céus do Nordeste há 115 milhões de anos. A Chapada do Araripe também é famosa pela qualidade de seus fósseis perfeitamente preservados de peixes, anfíbios, insetos e outros invertebrados. De lá saíram inclusive os restos de alguns dinossauros que lá viveram no Cretáceo Inferior, quando a América do Sul acabara de se separar da África e o oceano Atlântico ainda era um estreito braço de mar, talvez semelhante ao mar Vermelho, que separa o continente africano da Península Arábica.

Mas a Chapada do Araripe não faz apenas a festa dos paleontólogos de vertebrados e de invertebrados. Lá também é um sítio paleobotânico muito importante. De lá tem saído os fósseis mais antigos que se conhece de diversas linhagens da flora atual, cujas raízes de sua evolução e desenvolvimento se encontram no antigo supercontinente Gondwana.

Tome o exemplo dos lírios, estas belas florzinhas de múltiplas colorações e que são cultivadas em jardins e em vasos ornamentais ao redor do planeta. Na falta de fósseis mais antigos de representantes da família das liliáceas, um estudo molecular de 2007 sugeria que a origem da família dos lírios teria se dado há cerca de 68 milhões de anos, nos últimos estertores da era dos dinossauros…

Só que não. Agora se sabe que os lírios são muito mais antigos. Tudo graças à descrição de uma planta batizada de “lírio do Crato”, ou melhor, Cratolirion bognerianum, um lírio que crescia à beira de um antigo lago de água doce que ficava numa planície litorânea onde hoje é o Araripe. Seu fóssil, hoje depositado no Museu de História Natural de Berlim, foi retirado de uma camada fossilífera conhecida como membro Crato, que faz parte da Formação Santana.

Com uma idade de cerca de 115 milhões de anos, Cratolirion é o mais antigo membro da famílias das liliáceas. É também uma das mais antigas plantas monocotiledôneas conhecidas. As monocotiledôneas recebem este nome por apresentarem apenas um cotilédone no interior das sementes. Os cotilédones são as primeiras folhas dos embriões das plantas com sementes.

Já no caso das plantas florescentes dicotiledôneas (200 mil espécies), seu embrião contém dois ou mais cotilédones.

A linhagem das monocotiledôneas conta hoje com cerca de 60 mil espécies, entre orquídeas (20 mil espécies), ervas-doces, lírios e lírios do vale, todas as gramíneas (poáceas), todas as palmeiras (arecáceas), bromélias, bananas, abacaxis e uma infinidade de outras plantas essenciais para a humanidade.

Crédito: Museum für Naturkunde Berlin.

Conservação excepcional

De acordo com os paleobotânicos que descreveram a nova espécie, Cratolirion é extraordinariamente bem preservado. Encontram-se fossilizadas todas as suas raízes, a flor e até mesmo células individuais. Com um comprimento de quase 40 centímetros, o espécime não é apenas extremamente grande, mas também preserva quase todas as características típicas de plantas monocotiledôneas, incluindo folhas estreitas com veios paralelos, bainha foliar, sistema radicular fibroso e flores triplas.

A tomografia computadorizada do fóssil permitiu analisar os detalhes da inflorescência escondidos na rocha calcária. Um código de cores na imagem abaixo torna esses detalhes evidentes: o eixo principal é marcado em turquesa, as folhas de apoio em verde escuro, os pistilos em verde claro e os restos das pétalas reais ainda podem ser vistos em laranja.

A descoberta é tão importante que mereceu ser publicada em Nature Plants, o braço botânico da celebrada revista científica britânica Nature.

O trabalho é assinado por três pesquisadores do museu berlinense, e pela botânica brasileira Mary Bernardes-de-Oliveira, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo

A origem das flores

Um código de cores da tomografia computadorizada mostra detalhes da planta: O eixo principal (turquesa), folhas (verde escuro), pistilos (verde claro), pétalas (laranja).

Todos os principais grupos de angiospermas têm um registro fóssil que remonta há 100 milhões de anos. No entanto, o registro das monocotiledôneas da mesma época é muito pobre em comparação ao das outras angiospermas.

Graças à descrição de Cratolirion, agora se sabe que as liliáceas evoluíram no antigo supercontinente Gondwana, uma descomunal massa de terra firme que dominava a porção austral do planeta entre 250 milhões e 100 milhões de anos atrás, unindo América do Sul, África, península Arábica, Madagascar, Índia, Austrália e Antártida.

Muitas plantas dicotiledôneas já foram descritas a partir dos mesmos sedimentos do antigo lago Crato, na Chapada do Araripe. Estas incluem nenúfares, magnólias e parentes da pimenta e do louro.

Em contraste com outras plantas com flores da mesma idade cujos fósseis foram achados nos Estados Unidos, Portugal, China e Argentina, as plantas florescentes da Chapada do Araripe são extraordinariamente diversas, afirmam os especialistas. Isto pode ser devido ao fato de que, há 115 milhões de anos, o lago Crato encontrava-se em latitudes mais baixas, portanto nos trópicos, enquanto que todos os demais fósseis conhecidos de plantas florescentes precoces cresciam em latitudes médias, em porções temperadas do planeta. Tanto ontem quanto hoje, a diversidade biológica é maior nos trópicos, e vai declinando na medida em que caminhamos na direção das regiões temperadas.

Neste sentido, observa Clément Coiffard, o principal investigador por trás da descoberta de Cratolirion, o calcário da Formação Santana oferece uma oportunidade única para se conhecer como era a vegetação nos trópicos no Cretáceo inferior.

“É provável que plantas com flores tenham se originado nos trópicos, mas poucos fósseis foram descritos até hoje.” Logo, ainda não há meios de comprovar esta hipótese.

Precisamos de respostas. Paleobotânicos do Brasil, ao trabalho!

 

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    Peter Moon é um repórter científico, historiador da ciência e pesquisador da história natural da América do Sul

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