Reportagens

COP16 ainda não viu a cor do dinheiro para proteger a biodiversidade mundial 64m72

Chefes de estado tentarão desatar os nós do financiamento, enquanto países investem 2% do orçamento anual em conservação

Aldem Bourscheit ·
28 de outubro de 2024

Cali (Colômbia) – Presidentes e ministros nacionais que chegam esta semana na COP16, a 16ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (CDB), terão pela frente a duríssima tarefa de destravar o dinheiro para tirar a conservação mundial da pindaíba.

O tema nada avançou entre os quase 200 países reunidos desde segunda (21). Até agora, foram mobilizados apenas US$ 200 milhões dos US$ 200 bilhões anuais até 2030, acordados há dois anos na COP15, em Montreal (Canadá).

Seriam R$ 9 trilhões somados até o fim da década, três vezes o PIB brasileiro, de governos, doações e setor privado. Isso incluiria US$ 20 bilhões anuais a países em desenvolvimento até 2025 – faltam dois meses – e US$ 30 bilhões por ano até 2030.

“Nenhum dos compromissos para conservar a biodiversidade global sairá do papel sem financiamento”, destacou Ane Alencar, diretora de Ciência da ong Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e doutora em Recursos Florestais e Conservação pela Universidade da Flórida.

O isolamento de florestas e outros ambientes naturais ameaça a biodiversidade global. Foto: Martin Wegmann/Creative Commons.

A falta do dinheiro emperra uma das principais metas globais, a proteção de ao menos 30% das terras e regiões de águas doces, mares e oceanos – incluindo o máximo de diferentes espécies e ecossistemas – e recuperar 30% de ambientes degradados, tudo até o fim da década.

Dinheiro não deveria ser um problema para países que estão arcando com muito dinheiro e vidas humanas pelos prejuízos da perda de biodiversidade e da crise do clima. “As lacunas de financiamento em conservação aumentam a exposição a esses impactos”, disse Martin Stuchtey, fundador do Landbanking Group, plataforma que recompensa a restauração ambiental.

Sem dúvida, mas muitos recursos planetários seguem fluindo, firmes e fortes, para bem longe da urgente proteção de todas as formas de vida. Isso compromete fortemente a meta da CDB para cortar US$ 500 bilhões anuais em investimentos prejudiciais à natureza, ou cerca de R$ 2,8 trilhões.

Afinal, impressionantes US$ 7 trilhões anuais – quase R$ 40 trilhões – em subsídios privados e de governos, por volta de 7% do PIB global, afetam a conservação, mostrou um relatório das Nações Unidas. Aportes em soluções baseadas na natureza são 30 vezes menores, de US$ 200 bilhões ao ano.

((o))eco mostrou que os maiores bancos mundiais injetaram US$ 395 bilhões em setores ligados ao desmate e violação de direitos humanos, de janeiro de 2016 a junho deste ano. O Brasil responde por 72% dos créditos para produzir e processar commodities ligadas à destruição dos biomas.

Além disso, os gastos mundiais militares somaram US$ 2,44 trilhões só no ano ado, ou cerca de R$ 14 trilhões. Foi um aumento de 6,8% sobre os custos de 2022 e o mais agudo desde 2009, mostra o Sipri, sigla em Inglês do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, de Estocolmo (Suécia).

O lema da COP16 é “Paz com a Natureza”, mas as guerras recebem bem mais investimentos do que a conservação. Foto: UN Biodiversity/COP16/Divulgação

Um dos grandes nós de financiamento são recursos prometidos na COP15 ando por uma conta atrelada ao Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, sigla em Inglês), uma organização fora da Convenção da Biodiversidade onde doadores ricos controlam projetos para liberar recursos, como para conservação e clima.

Entidades e povos mundiais criticam as supostas lentidão e burocracia do fundo. “Os recursos não chegam onde estamos”, resume Gilmer Castro, diretor de Programas na associação indígena Bari Wesna, em Coronel Portillo, no centro-leste do Peru. 

Uma proposta para azeitar o o ao dinheiro a esses povos e países mais ricos em biodiversidade sofre alta resistência nas negociações de Cali, de países como Estados Unidos, Canadá e do Reino Unido.  

Para a advogada e cientista política Denisse Linares Suárez, da ong Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR), atuando em vários pontos do mesmo vizinho Peru, o que pesa mesmo é manter o fluxo de recursos naturais a economias globalizadas.

“Reforçar a conservação nos países e dar maior autonomia aos povos indígenas da América Latina pode melhor controlar ou reduzir o o a matérias-primas florestais, minerais e biológicas”, avaliou. 

Desmatamento e agrotóxicos para soja e outros grãos mantêm o consumo interno e as exportações. Foto: Rawpixel/Divulgação

Enquanto o dinheiro não flui mais e mais rápido, as metas da Convenção da Diversidade Biológica estão indo para o beleléu, junto com os ambientes naturais. 

Quase ¼ da Amazônia sul-americana, ou 193 milhões de ha, uma área equivalente a do México ou aos limites somados dos estados do Amazonas e do Mato Grosso do Sul, já não têm conectividade ecológica, mas sim nacos de vegetação separados uns dos outros.

O estudo da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG) e Aliança NorAmazônica (ANA) também indica que outros 108 milhões de ha correm o mesmo risco. Isso aproxima a floresta do colapso ecológico e emperra movimentos de animais para comer, reproduzir e migrar. A destruição não é menos intensa nos demais biomas.

“É urgente mudarmos a lógica de exploração econômica dos recursos e armos de um modelo que degrada para um que cria valor econômico a partir da regeneração da natureza”, disse Luísa Santiago, diretora na América Latina da Fundação Ellen MacArthur, que incentiva economias circulares.

A grana também pesa nos bloqueios para reforçar a repartição de benefícios pelo uso da biodiversidade, ligada ou não a conhecimentos de povos indígenas e comunidades tradicionais. A digitalização de recursos genéticos ameaça não recompensar adequadamente os países e pode abrir alas à biopirataria.

Usar muito e pagar pouco pelo uso da biodiversidade e recursos genéticos é a pauta das indústrias na COP16. Foto: Rawpixel/Direito ao Desenvolvimento/Creative Commons.

Uma das pedras-no-caminho é a Suíça, onde há 250 farmacêuticas. O assunto está na mira do setor e da biotecnologia, que desejam pagar o mínimo possível a países megadiversos. Já companhias como Microsoft e Amazon podem lucrar muito mantendo dados genéticos em “nuvens”, para criar inúmeros produtos. 

Cada nova droga derivada de florestas tropicais vale US$ 194 milhões, ou R$ 1,1 bilhão, para uma farmacêutica, e US$ 927 milhões, similares a R$ 5,3 bilhões, para a sociedade global, estimou a Zero Carbon Analytics, grupo de análises sobre crise do clima e transição energética.

Enquanto o dinheiro segue escasso nas vias abertas pela COP15, os governos nacionais aplicam menos de 2% dos orçamentos anuais em conservação, informou Kumi Kitamori, diretora-adjunta de Meio Ambiente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico  (OCDE). “Eles deveriam liderar pelo exemplo”, disse. A entidade reúne quase 40 países. 

“Uma alternativa é mobilizar mais capital privado, mas isso depende de políticas públicas confiáveis para reduzir riscos de investimentos”, destacou. “É possível pagar por serviços ambientais, cortar taxas e oferecer compensações. Os governos podem fazer muito nesse sentido”, avaliou.

A OCDE e o Fórum Internacional sobre Apoio Oficial Total para o Desenvolvimento Sustentável (TOSSD, sigla em Inglês), levantaram que, em 2022, doações globais para financiar a conservação somavam apenas US$ 25,8 bilhões, hoje cerca de R$ 147 bilhões. “É um avanço, mas ainda longe da meta estipulada em Montreal [COP15]”, constatou Kitamori.

Há um grande furo nos aportes mundiais de capital para manter a biodiversidade. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real/Creative Commons.

Há movimentos de outras fontes e setores. O financiamento global para proteger e restaurar ambientes naturais cresce e somou US$ 15,4 bilhões em 2022, graças sobretudo a empréstimos de bancos multilaterais, indicou um balanço divulgado na COP16. O valor é atualmente similar a R$ 88 bilhões.

Contudo, nem tudo pode ter efeitos reais em conservação, alertou Brian O’Donnell, diretor no grupo Campaign for Nature. Há diferenças entre financiar projetos “específicos para a biodiversidade” e iniciativas “relacionadas à biodiversidade”, com benefícios indiretos.

“Embora tenha aumentado o financiamento geral da biodiversidade, o valor com o objetivo principal de combater a perda de diversidade biológica diminuiu, caindo de US$ 4,6 bilhões em 2015 para US$ 3,8 bilhões em 2022”, disse ao Climate Home News.

Menosprezados no recebimento de dinheiro para manter terras e culturas, quilombolas e indígenas recebem outros tipos de apoios e até constroem meios próprios de financiamento.

No interior do Piauí, a vegetação é recuperada no Quilombo Lagoas com apoio técnico e financeiro do GLF, sigla em Inglês do Fórum Global de Paisagens, mantido sobretudo com doações de países europeus. A iniciativa dissemina mais reflorestamento pela Associação de Produtores Agroecológicos do Semiárido Piauiense (Apaspi). Lagoas é o maior quilombo da Caatinga, com cerca de 62 mil ha.

“O bioma é único no mundo. Agrega uma grande diversidade de plantas e animais, além de preservar em territórios como os quilombos a cultura de nossos ancestrais”, diz a a Maria Geanne Magalhães, filha de agricultores agroecológicos, técnica em agropecuária e apicultura.

Mais de um quarto do planeta estaria em terras indígenas, ou cerca de 38 milhões de km2 em 87 países, aponta a base Protected Planet, que agrega dados e informações de governos, ongs, setor privado e academia. Financiar a conservação nessa área toda é um desafio colossal.

Tentando cobrir essa lacuna no Brasil, o Fundo Jaguatá permitirá doações diretas aos territórios, sem pagar pedágio a bancos e outros intermediários. Ele é conectado à Aliança Global de Comunidades Territoriais (AGCT), à frente de 35 milhões de pessoas de 24 países na Ásia, África e América Latina.

“É uma resposta àqueles que seguem financiando a destruição da natureza”, resumiu Kleber Karipuna, líder do Povo Karipuna e Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

O repórter viajou a convite do IPAM.

  • Aldem Bourscheit 3f4l4o

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

Leia também 1b437

Reportagens
25 de outubro de 2024

COP16 pode reconhecer papel dos afrodescendentes na conservação 2j3752

Proposta encabeçada por Brasil e Colômbia precisa ser aprovada nos debates técnicos e depois pelo plenário da conferência

Reportagens
25 de outubro de 2024

Isolamento de áreas protegidas globais ameaça espécies emblemáticas como a onça-pintada 5v4w3t

Grandes trilhas ajudam a unir fragmentos de vegetação natural e a cumprir metas de conservação demandadas na COP16

Reportagens
23 de outubro de 2024

Enfrentar conjuntamente crises da biodiversidade, do clima e da desertificação será um jogo de ganha-ganha 434i3x

A COP16 pode aprovar uma proposta para que determinados pontos das três convenções sejam compartilhados pelos países

Mais de ((o))eco 386al

política ambiental 5n5325

Salada Verde

Evento ambiental reúne diferentes vozes na Lapa c2g3s

Salada Verde

Na ONU, Lula pede por mais proteção aos oceanos para combater mudanças climáticas 41h3s

Colunas

Cientistas pedem urgência em ações para salvar oceanos 3l2b6v

Salada Verde

Em pronunciamento, Marina Silva sai em defesa do Licenciamento Ambiental 573g3z

conservação 4u55e

Colunas

Arte naturalista Demonte 2t216j

Notícias

((o))eco é um dos ganhadores do Prêmio de Jornalismo Digital Socioambiental 4o3z3p

Salada Verde

Na ONU, Lula pede por mais proteção aos oceanos para combater mudanças climáticas 41h3s

Colunas

Cientistas pedem urgência em ações para salvar oceanos 3l2b6v

Conferência da Biodiversidade 5j2r6k

Reportagens

Brasil aposta na conciliação entre convenções da ONU para enfrentar crises globais 3p1w31

Reportagens

Brasil lança Metas Nacionais de Biodiversidade, mas não sabe qual o custo de implantá-las 6u556i

Notícias

COP16.2 – Financiamento da biodiversidade avança, mas ainda faltam recursos 4ld48

Notícias

Países precisam desatar nós para proteger a biodiversidade global 20t4r

COP 16 - Bio 393k2n

Reportagens

Brasil lança Metas Nacionais de Biodiversidade, mas não sabe qual o custo de implantá-las 6u556i

Notícias

Área ambiental federal quer manter 80% da Amazônia até o fim da década 3p2i68

Notícias

Países precisam desatar nós para proteger a biodiversidade global 20t4r

Salada Verde

Decisões adiadas da COP16 da biodiversidade serão debatidas no fim de fevereiro, em Roma 2y2n69

Deixe uma respostaCancelar resposta 2s56o

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.